Manchas históricas

Camilo Irineu Quartarollo

 

O tratado de Panos e Vinhos, de 1703, impedia Portugal de produzir tecidos, mas somente vinhos. Os tecidos ingleses vestiam o mundo. Os vinhos inebriavam, mas não davam camisa a plebe, menos ainda a cativos. No país da cachaça havia dois tipos de brasileiros, um que mandava e o outro sob o regime da escravidão. Contudo, a Inglaterra não “queria ninguém mal vestido” e somente assalariados compram roupas inglesas!

Quem quiser saber mais desse boom industrial inglês e da miséria social do século XVIII vejam também as obras de Charles Dickens.

Os portugueses, sem indústria própria, começaram mercadejando produtos agrícolas e escravizados em suas feitorias pelo mundo navegável. A pressão inglesa contra o tráfico humano vinha desde a Independência. D. Pedro primeiro protelava e disse que aguardaria a Constituição que, finalmente, ele mesmo outorgou em 1824, mantendo a escravidão nas terras brasileiras.

Sobre a diplomacia Imperial do Brasil pairava a espada de Dâmocles e o ultimato de 1850: se não parassem o tráfico de humanos a armada inglesa bloquearia os portos brasileiros. Os donos do poder do Brasil nunca aceitaram de fato o fim do tráfico desumano nem a Abolição e, para tanto, retaliavam com seus artifícios no Legislativo e mantiveram as vantagens expropriatórias. José Bonifácio, o ideólogo da independência, foi colocado de escanteio no governo por defender direitos e emancipação dos cativos.

Em 1850, no reinado de D. Pedro II, sob as ameaças inglesas, o ministro Eusébio de Queiroz se antecipou e criou a Lei com seu nome, para impedir legalmente, e doravante, o chamado tráfico negreiro, mão de obra exclusiva do Império. Contudo, nunca se viu tanto tráfico de africanos retidos em lotes pela praia da Marambaia nem tantos jogados ao mar ou sepultados no cais do Valongo.

No mesmo mês da Lei Eusébio de Queiroz se criou a Lei de Terras, desta vez com a pressão dos latifundiários escravagistas ressentidos e para resguardar o patrimônio em suas mãos. Desta vez não escamoteavam como na “lei para inglês ver”, era efetiva e fariam cumpri-la. A lei votada por eles mesmos impedia de o pobre comprar terras por pequenos lotes, conforme os parcos recursos. Ainda assim famílias uniram do pouco em pouco as economias, mas a maioria ficou inadimplente.

Ao descrever os fugitivos negros os jornais da época evidenciam que eram pessoas mui doentes e maltratadas e, a chance de captura-las era possível até por um idoso ou criança. Era uma atividade que muitos se dedicavam sem serem capitães de mato, vide o conto de Machado de Assis, Pai contra mãe. O fundador da Academia de Letras e umas das mentes mais lúcidas do país, anote-se, era negro. A divisão ainda paira sobre a Identidade Nacional nos resquícios da escravidão mal abolida. Há diferenças gritantes e históricas na sociedade brasileira. Ainda paira a espada de Dâmocles e, oxalá, ajam cabeças pensantes e palavras cortantes como a de Machado e outros.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

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