Independência, ou não!

 

Camilo Irineu Quartarollo

 

 

 

 

No sesquicentenário da Independência, em 1972, minha professora de desenho me veio com uma proposta da comemoração cívica: você, que gosta de desenho faz um. Gostava e até rabiscava em papéis de pão os bangue-bangue de mentira da tevê. Eu era também um iludido dessa Independência do Ipiranga, um lugar plácido de aluno imaginoso. Para o trabalho gráfico deram-me um papel próprio para desenho, de boa textura – não os usados para embrulhar mortadela. Nem com toda a nobreza do papel canson tive êxito nas minhas garatujas.

Eram tempos de ditadura militar, anos de chumbo, vi um menino levar surra de cinto pelo diretor. Para entrar à sala de aulas tínhamos de nos perfilar e manter os braços cruzados ou mãos para trás, assim não desembestávamos correndo. Os pequeninos iam assim compassados e com seus sorrisinhos marotos, aliviando-se da tristeza daqueles dias. Lembro-me dos rostos ainda. As solenidades cívicas no galpão eram momentos de descansar das carteiras duras, de madeira, e da sisudez dos professores. Éramos meninos e meninas, brincando ainda, e nos queriam patriotas. Não víamos a hora de debandarmos em correrias, rodopiar, pular e nos exibir para o grupo. A dimensão lúdica era sinônimo de mau comportamento, com nota de avaliação mensal na caderneta escolar.

Um dia o menino que apanhara do diretor roubou meu lanche de pão sem nada. Sentou-se ao meu lado na escada, de repente arrancou da minha mão o lanche e correu mastigando meu pão esmigalhado. Que raiva! Nos dias seguintes, percebi que ele era mais pobre que eu, não trazia nada de casa. A professora de História punha-me na primeira carteira para impedir que os do fundão colassem de minha prova. Ara, que colassem! Amuado na última carteira ficava o Salvador, com este a amizade era aos poucos; já o Heitor, na ginga do samba era bom de conversa e amizades, batia papos com as meninas todas, andava por tudo com seu sorriso aberto, conversando.

Quando completei o quarto ano o diretor me chamou. Fui com medo, mas deu o meu diploma, solene e respeitoso. Orgulho, ufa!

Passados anos e a ditadura, dei-me conta das composições manuscritas que fazíamos em papel almaço, sempre de enaltecimento cívico-militares.

A Independência, cujo quadro do Ipiranga era afixado nos murais e na nossa mente, de fato, não existe tal qual contada. O quadro épico quer dar um enquadramento cívico do Brasil em São Paulo. As lutas não terminaram com o grito às margens plácidas do Ipiranga, a realeza fez ouvidos moucos às questões essenciais. O país continuou dependente e dividido, pois a escravidão não fora abolida. Os escravocratas e traficantes de gente é que se apossaram dessa independência embelezada.

Por isso, por nossa independência – não a deles, votemos por um Brasil soberano, laico, justo, inclusivo, sem ódio ou preconceitos de raça, cor, religião ou orientação sexual, onde caibam todos os que amam este país.

 

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

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