O Homem na calçada

 

 

Matheus Caracho Nunes

 

O ritmo que embala o som e se destaca na introdução vem de uma música de Tim Maia, “Ela partiu”. Quando começa a cantar, Mano Brown conta uma história que se passa no Brasil da década de 1990. “Um homem na estrada” destaca uma série de condições estruturais que culminam com violações de direitos e que o empurram para uma condição de marginalidade social: “Equilibrado num barranco incômodo, mal-acabado e sujo, porém. Seu único lar, seu bem e seu refúgio. Um cheiro horrível de esgoto no quintal (…) “Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou. Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou”.

Convivendo com pessoas em situação de rua no município de Piracicaba, pude ouvir que esta música era como um hino, capaz de retratar, como uma fotografia musical, condições muito semelhantes pelas quais passaram ao longo de suas vidas. Ainda assim, como na música, alimentam o desejo de recomeçar. Leonardo Boff, em seu livro intitulado “Tempo de Transcendência” aponta que os seres humanos são protestantes, isto é, protestamos continuamente e não aceitamos facilmente a realidade na qual estamos mergulhados. A música, a um só tempo, retrata a realidade na qual estamos inseridos, e nos possibilita transcender tudo isso. O homem na estrada está sempre recomeçando.

O Brasil apresenta um histórico de violências contra a população em situação de rua: na noite de 23 de julho de 1993, mesmo ano de “Um homem na estrada”, oito adolescentes em situação de rua foram assassinados por milicianos no Rio de Janeiro no evento conhecido como “chacina da Candelária”; no dia 19 de agosto de 2004 sete pessoas foram assassinadas e oito ficaram feridas enquanto dormiam na região da Praça da Sé. Em memória e respeito a estes e outros eventos violentos, o dia 19 de agosto passou a ser lembrado como o Dia Nacional da Luta da População em situação de Rua.

Há também outras formas de violência, a utilização de termos como “morador de rua” ou até mesmo “mendigo” são exemplos. Nestas situações não se considera a subjetividade dessas pessoas, e se reproduz juízos de valor. São maneiras de homogeneizar uma população heterogênea e de culpabilizar o sujeito por uma questão que o ultrapassa, fixando-o naquela condição e ignorando possibilidades de mudança.

Tanto os movimentos sociais quanto as políticas públicas utilizam o termo população em situação de rua por considerar melhor o caráter transitório da condição dessa população, caracterizada pela pobreza extrema, fragilidade ou rompimento dos vínculos familiares e ausência de moradia convencional. Por estes motivos, essas pessoas utilizam os espaços públicos ou as unidades de acolhimento como locais de pernoite e convivência.

Até a década de 1990 as ações públicas limitavam-se ao assistencialismo e reproduziam ações higienistas. A Política Nacional da Assistência Social (PNAS), de 2004, garantiu o atendimento da população em situação de rua nos serviços da assistência social; a Política Nacional para a População em Situação de Rua, de 2009, criou as diretrizes para orientar a construção de políticas para esta população, a Resolução nº 40, de 2020 passou a fornecer as diretrizes para promoção e defesa dos direitos deste grupo.

A população em situação de rua está no centro da questão urbana, social e racial brasileira, as políticas específicas para este grupo são recentes e ainda há uma série de violências rotineiras impingidas contra esta população. Para que o “Homem na Estrada” recomece sua vida, é preciso garantir-lhe direitos. Para que se transcenda a situação atual é preciso quebrar as barreiras do racismo, da falta de moradia, do desemprego e desigualdade social, que só se ampliam pela falta de acesso aos direitos e políticas sociais.

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Matheus Caracho Nunes, cientista social da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads)

 

 

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