Camilo Irineu Quartarollo
Naquele dia, diz o Gênesis, Deus descansou. Até Ele! Alguns caipiras o viram pescando nas barrancas do Piracicaba, outros alegam que o Altíssimo descansa nas nuvens brancas, em home office. Entretanto, o milagre doprogresso nos traria a felicidade, seríamos como deuses num sábado ensolarado. O milagre da tecnologia!
Disseram-nos que a tecnologia nos daria mais tempo de vida para o lazer, para descanso e convívio com a família. Nossos avós pararam de usar as enxadas com o aparecimento dos tratores. Com os eletrodomésticos as donas de casa viraram “feiticeiras do lar”.
NoBrasil ingênuo não havia tantas macieiras como no paraíso do éden, mas laranjais. Milagres?! Bolo de laranja. Aquise bate o bolo do milagre econômico, daí você espera o bolo crescer e espera…Quando crescer sobram as migalhas ao povão, se sobrar, daí distribuem nas vésperas das eleições!
Esse “bolinho” não chega às classes D e E. O pobre faminto busca como cão “um de comê” – não chame essas aspas de chula não. O “um de comê” pode ser qualquer coisa que possa servir de alimento, mesmo no lixo próximo, como um pão duro que seja, um biscoito quebrado, restos divididos solidariamente com algum vira-lata ou com quem precise. A riqueza do brasileiro é seu coração, mesmo angustiado pela fome. É vivo, pulsante, solidário e até alegre. É um forte, um hércule-quasímodo, diz Euclides da Cunha. Não há que se profanar nossa redenção com um coração emprestado, nem que seja o do D. Pedro I, temos o nosso.
No nordeste brasileiro, na seca dos anos noventa e sem políticas públicas, diziam-se que comiam ratos e calangos para sobreviver. Em 19 de novembro de 1991, Xico Sá publica na Folha de São Paulo sobre o homem-gabiru, um morador de Engenho da Bondade, Pernambuco, cujo cardápio eram ratos. O nome Engenho da Bondade parece ironia. Que bondade, hein?! A ironia faz parte de nossa história, diga lá Machado de Assis. O Brasil não se emancipa, produz mais empobrecidos que soja.Depois da Independência continuaram os mesmosempobrecidos da nação, depois da República, depois da imigração europeia e depois dos planos econômicos e… ainda hoje os mesmos brasileiros empobrecidos!
O principal produto do mercado é o empobrecido em série. Temos empobrecidos trabalhando até o esgotamento eos desalentados que não são “empreendedores”, achando que o são por suas ineficiências e culpa. É que o mercado mantém uns como empreendedores individuais, mas ameaçando-os com a exclusão do paraíso.
A nova ordem de coisas almejada pela tecnologia não se concretizou nem para classe média. O deus mercado, o da felicidade, a sequestra, prende os seus sonhos com seus medos. O que vemos dos “benefícios” da tecnologia é a mesma maldade de origem.
Apesar da casa inteligente e do 5G, demitem-se milhões de trabalhadores, o “homeoffice” virou marca de gestão à distância, para cumprir metas, inclusive no sétimo dia.
Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros