Invisíveis

Merli Diniz

 

Tenho matutado muito como se diz aqui na boca do sertão, sobre a questão da tomada não só da área central de São José do Rio Preto, mas de forma igual nas grandes cidades do país, por pessoas que não têm mais como viver dignamente e tornam a rua, suas casas.  Como deve ser difícil viver assim, com insegurança e toda sorte de riscos.

Claro que muitas das reclamações procedem:  há sujeira, gente deitada pelas ruas, o que torna tudo feio, na concepção de muitos. Na minha, triste e lamentável.

Quem não gostaria de um país justo e igualitário, com oportunidades iguais para todos? Seria maravilhoso andar pelas ruas sossegadamente, vendo só gente bonita, sorrisos com dentes, família feliz feito propaganda de margarina, que aliás, não é recomendável para a saúde. É o país dos meus sonhos!

O que não podemos é indefinidamente, tratarmos somente as consequências de qualquer situação social negativa. Temos que buscar em primeiro lugar as causas, assim como, em outras doenças os sintomas são importantes para um tratamento adequado, as causas são fundamentais para a cura, no processo social deveria funcionar do mesmo modo. Tem os drogados que querem mesmo é dinheiro para manutenção do vício. Tem mesmo. E os usuários do tabaco e do álcool, que não são moradores de ruas e sim, têm situação financeira confortável, mas precisam desesperadamente de suas doses diárias?  Funciona igual, para qualquer dependente químico, mas para as drogas consideradas mais pesadas, a necessidade deve ser ainda maior, imagino eu. Mas, não há só drogados, há gente que perdeu seu trabalho, não pode pagar aluguel e não tem onde morar, vai pra onde? Não há políticas públicas de longo e médio prazos para recuperação da condição de cidadania e sim, projetos vergonhosamente eleitoreiros para garantir a vitória nas eleições que se aproximam. Ah, mas tem gente que não quer trabalhar! Tem, como em qualquer camada social.

Como passamos por um cenário de pobreza e violência extremadas no país e moradores de rua não são privilégio da nossa cidade, tais reclamos me reportam ao que aconteceu no Rio de Janeiro, na década de sessenta, no governo Carlos Lacerda, na operação mata-mendigos.

                Na década de 1960, Carlos Lacerda era governador do Estado da Guanabara e um dos apoiadores do golpe militar de 1964. Entre outubro de 1962 e janeiro de 1963, cerca de 20 pessoas foram tiradas das ruas da Guanabara e lançadas nos dois rios pelos agentes do SRM. Nove morreram. Aquela matança só terminou porque, na quarta e última viagem, na noite de 17 de janeiro, estava a pernambucana Odília Alves Japiassu. Segundo a imprensa da época, ela havia sido campeã de natação na cidade onde nascera. Jogada no Rio da Guarda, a vítima nadou até o outro lado e fugiu. Dias depois, conseguiu denunciar a atrocidade que ficou conhecida como a “Operação Mata-Mendigos“.

Triste episódio para o Brasil.

Foi preciso que os invisíveis se tornassem visíveis, começassem a incomodar para serem notados, não por razões humanitárias, obviamente.  Gente esparramada pelas ruas, lixo e pobreza, é um espetáculo triste e deplorável para todos nós, mas não é só tirarmos da nossa visão que vai resolvida a questão, como se ela não existisse. O apartheid é um faz de conta e conhecemos muito bem seus resultados.

Como disse o Dr. Evandro Pelarin, é uma questão que demanda união de esforços para atender aos moradores de rua, com dignidade, respeito, mas com ações concretas, para que eles tenham alternativas reais de saída desta terrível situação.

 

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Merli Diniz, professora, advogada especialista em Direito do Consumidor, poeta e cronista.

 

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