Teatro: o mundo em transformação

Camilo Irineu Quartarollo

 

No fim da segunda guerra mundial, em 1945, um refugiado judeu polonês, chega de mãos vazias ao Brasil. Parou na Alfândega e na pendência da canetada de um policial, torturador e chefe da Imigração. Necessitava apenas de uma assinatura no passaporte, sem a qual não entraria no país. Visto pendente.

O navio cargueiro apita para zarpar novamente, esperando o reembarque do refugiado Clausewitz.

Tempos de paz é um filme brasileiro, com roteiro de Bosco Brasil, dirigido por Daniel Filho e como estrelas principais Tony Ramos e Dan Stulbach.

Aqui entraram talvez pela mesma Alfândega ou por vias clandestinas muito nazistas, como Menguele, Franz Stangl, Cukurs e outros, a um lugar de asilo e estruturas racistas, fazendo escola de maldades num país fértil delas.

Na Alfândega, sem assinar o visto, Segismundo aproveita para justificar as suas maldades. Torturou a muitos, inclusive o próprio médico que salvara a vida de sua única irmã. Numa sessão, o maldito encapuçado esmigalhou a golpes de martelo as mãos do cirurgião, aleijou aquele que lhe salvara a irmã e tudo, tudo para “cumprir ordens” e sujeitar-se à confiança de um padrinho. Que incita o afilhado subserviente, que “já sabe o que fazer”, ele vai torturar, atirar nos desafetos, executar pessoas ou grupos adversários do padrinho e, por licença e orientação do seu deus pequeno, no culto fanático ao ódio e às armas da morte.

Ordens? Não! O mentor do crime não vai assumir, vai dizer que foi somente “uma sugestão”, “uma brincadeira”, “uma bravata”, “sentido figurado”.

Ora, Clausewitz era um ator! Segismundo o desafia. Se o artista o fizesse chorar em dez minutos que lhe restavam para o reembarque, ele assinaria o visto de entrada. Um requinte de tortura psicológica ao refugiado indefeso. Nem os gritos horrendos ou choros dilacerantes dos torturados, nada demoverá a alma fechada e insípida de Segismundo. Clausewitz argumenta exaustivamente que não, que a realidade já o faz chorar, viu a família e amigos morrerem. Não quer reviver.

No último apito do cargueiro atrasando-se, o artista conta do professor morto na prisão e faz Segismundo contrito chorar, borrar o visto e assinar enxugando as lágrimas. O milagre do teatro e de seu poder catártico! O teatro faz ver por dentro o que se tenta esconder. O ator falava com as mãos, tais as que o torturador esmigalhou e com as quais não conseguia se reconstruir simbolicamente como pessoa.

O nazismo tem premissas narcisistas, megalomaníacas, messiânicas, racistas e irreais. Muitos extremistas do nazismo matam os próprios familiares e se suicidam, uma forma extrema de se livrar da inconcebível realidade.

A vida não basta a nós viventes, somos muitas vidas em uma, as vivências do mundo simbólico e da arte, tais como o teatro vivo e transformador de Clausewitz. Se você não for, o teatro pode vir até você! Para que serve? Não sei.

 

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

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