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Camilo Irineu Quartarollo – Escrevente e escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

Onde ocê mora?!

Nasci lá pelas bandas do Bongue, meio fantasma da zona Oeste de Piracicaba, donde meus olhos meninos curtiam as belezuras do rio, que grandeza! O rio espreita onças pintadas, rastros fluidos, zunir de anzóis, pegadas de sacis, cantos de corujas, cascalhos de fundo, bancos arenosos, águas grandes ou aguinhas entre pedras úmidas, multidões de seres e flores por este mundéu onde o peixe se espalha e o poeta se atrapalha. Na orla do rio se come peixe assado, pamonhas de amarelar os beiços, bolo cremoso de milho, quitutes variados, baila-se sob o luar encantado, segue-se o Divino, bebe-se a boa caninha, transborda-se a rir e a chorar numa noite histórica, no encontro de apaixonados ou desprezados.

Ressinto-me de que esse espaço originário da cidade sofra o risco de se tornar shopping, com armações de cimento, derrubando a mata nativa, afugentando os poucos animais que ainda vivem ali. Alguns sonham com rentosos empreendimentos, se não fosse tombado como patrimônio histórico. O Engenho é palco de eventos culturais, propício ao grande público e atores em seus galpões ou apresentações campais sob os azuis fluidos ou nuvens cinzas, entre as chaminés dos antigos fornos do Açúcar piracicabano, onde a maioria dos operários eram trabalhadores negros, como os bem representados por Portinari em suas pinturas.

Aqui foi terra das tribos extintas dos Paiaguás, os quais perambulavam pelas margens selvagens da Rua do Porto. Os caminhos de servidão abertos pela mata chã e terra grudenta de pisadas sucessivas por calcanhares e cascos recalcando trilhas, ruelas e ruas por onde revisitamos a história. Os ribeirinhos eram chamados de gente lá de baixo e os afortunados e autoridades moravam onde não se davam enchentes, a gente lá de cima. Com o tempo os bairros foram se fazendo entre vizinhos de cerca.

A cidade viveu os resquícios da escravidão protelada, no último país das Américas a abolir oficialmente. Às vésperas de se render, Piracicaba contava com o terceiro maior contingente de cativos de São Paulo, essas mãos, pés e cultura estão na alma da cidade.

Acima do bairro dos Alemães fica o Vila Independência, onde moro, mas Dom Pedro I não passou por aqui não, se passou não parou nem para fazer pipi. Na verdade, este bairro chamado de Independência é Vila África, mas não é nome oficial. Poderiam objetar que os antigos moradores afros se foram para Santa fé ou outras localidades com menor custo de vida. Entretanto, o Bairro dos Alemães, vizinho, não se tornou Bairro da República ou outro e, andando por lá, vejo gente como aqui. Negros e brancos me dando bom dia. Ouço com júbilo os batuques, as danças em uma vilinha de casas de minha rua. Temos o Centro Cultural Vila África e várias lideranças culturais importantes. Não dá para ficar no miolinho ensimesmado da Catedral onde a lendária Cobrona espichou a cabeça fora.

Onde ocê mora?! Aqui memo, Piracicaba, ara!

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