O Patriarca da Ecologia

José Renato Nalini

 

Duzentos anos da Independência propõem revisita a personagens dessa ruptura da colônia com a metrópole e o nascedouro de um Império sul-americano. Figura sobre a qual ainda não se exauriu o repertório literário é José Bonifácio de Andrada e Silva. É cognominado o “Patriarca da Independência”. Mas nem todos sabem que ele poderia também ser chamado “Patriarca da Ecologia”.

Marcelo Leite, no ensaio “Algoritmo da destruição”, recupera algo desse santista polivalente. Recorre ao historiador José Augusto Pádua e seu livro “Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista – 1786-1888”.

José Bonifácio foi bem moço para Portugal e ali formou-se na Universidade de Coimbra, inspirado pelo Iluminismo e pelo naturalista italiano Domenico Vandelli, precursor na crítica à destruição ambiental que já se verificava em Portugal e em suas colônias. Bonifácio se preocupava com a vegetação da pequeníssima nesga de terra contígua à Espanha, propondo um urgente replantio.

Para José Augusto Pádua, os quatro pilares detectáveis na obra de Andrada são: visão de mundo fundada na economia da natureza. Esta é pródiga e fornece, gratuitamente, um patrimônio inesgotável, desde que bem administrado. Defesa do progresso econômico como instrumento civilizatório, ou seja, a miséria e a pobreza impedem que o ser humano se desenvolva e consiga explorar suas potencialidades até atingir a plenitude possível na vocação de perfectibilidade que lhe é própria. Era um apologista da racionalização das técnicas produtivas pela aplicação pragmática do conhecimento científico. A ciência deve ser aplicada à descoberta e aprimoramento de tudo aquilo que torne mais confortável a vida humana.

Por fim, José Bonifácio criticava a exploração destrutiva dos recursos naturais. Tinha bem presente que o crescimento de uma árvore, até tornar-se frondosa, era tarefa para décadas de tempo, vigilância para que a muda não fosse destruída, nem arrancada. Usar da natureza como um supermercado gratuito, do qual tudo se extrai, nada se repõe, é uma política equivocada e suicida. A humanidade não consegue viver sem os recursos naturais da Terra.

José Bonifácio voltou aos 56 anos para o Brasil e logo se tornou o chefe do gabinete de ministros de Pedro I. Ele sustentava a emancipação gradual de escravizados, tanto que o jovem Imperador também defendia a tese, acreditando que a gradual imigração de europeus não prejudicaria a lavoura tupiniquim, propunha a assimilação de indígenas, a educação popular e a superação do modelo agrícola colonial. Não seria necessário destruir a floresta para que o novel Império propiciasse vida decente aos seus súditos.

As florestas eram patrimônio muito venerado por Bonifácio. Formavam um elemento essencial para preservar a fertilidade da terra e a abundância de água. Advogava que a Corte só vendesse ou distribuísse terras para os interessados em povoá-la, desde que um sexto da área mantivesse florestas naturais ou plantadas.

Como inteligência fulgurante, muito acima da média dos políticos profissionais que já voejavam em torno ao Imperador, foi alvo de malévolas intrigas e sua permanência na Corte durou pouco. Em julho de 1823 deixou o ministério. Preso e exilado em novembro, permaneceu na França até 1829. O Imperador resignatário reconhece o erro que praticara contra o fiador da Independência e o chama para ser tutor dos príncipes. Só que em 1833 é deposto, foi morar em Paquetá, onde morreu cinco anos depois.

Suas ideias não seriam assimiladas pelos tacanhos limites da elite à época, não muito diferentes dos que hoje se verificam nos considerados líderes da terra. As elites não querem uma Pátria desenvolvida, porque povo educado não aceitaria desmandos, falcatruas, a corrupção endêmica, o descompromisso para com o Erário.

Com a curtíssima e míope visão dos que se aproveitam da terra até exauri-la completamente, os brasileiros mantenedores das rédeas do poder cultivam o mito do berço esplêndido. “Um mito ambíguo, que pôs a natureza exuberante no centro da autoimagem da nação que surgia, motivando as missões científicas de naturalistas patrocinadas pelo Império, mas também a pintava como recurso em aparência infinito a ser explorado”, diz Marcelo Leite.

A aceleração do retrocesso é flagrante e óbvia. Nossos biomas já estão em colapso. Haverá catástrofes climáticas e queda expressiva na produção agrícola. Há duzentos anos José Bonifácio de Andrada e Silva já nos alertava para isso. Nossa surdez será trágica para as futuras gerações.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

 

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