Vida cotidiana: curiosidade e fascínio

Armando Alexandre dos Santos

Escrevi nesta coluna, há alguns meses, sobre um interessantíssimo livro intitulado “A vida cotidiana nos tempos de Homero”, de Émile Mireaux. Quero hoje tratar de outro livro da mesma coleção, escrito por outro autor e focalizando um tempo bem mais recente da história da Grécia antiga – daquela Grécia que tanto influenciou a cultura ocidental e da qual somos todos nós, a sabendas ou sem nos darmos conta, tributários.

Refiro-me ao livro “La vie quotidienne en Grèce au siècle de Péricles” (A vida cotidiana na Grécia no século de Péricles), de Robert Flacelière (Paris: Librairie Hachette, 1959, 375 p.), que possuo na edição original francesa, mas que já foi traduzido para o português e editada em Portugal.

A expressão “vida cotidiana” para designar um gênero literário e um tipo peculiar de abordagem historiográfica começou a ser usada em meados do século XX, inserindo-se entre as muitas consequências derivadas da renovação desencadeada pela chamada Escola dos Anais.

É muito ampla a bibliografia disponível sobre o conceito de vida cotidiana, ou seja, o conjunto de atividades exercidas pela generalidade das pessoas ao longo do dia (englobando residência, trabalho, modos de viver e se portar, deslocamentos e meios de transporte, hábitos de alimentação, higiene e lazer etc.). Além da perspectiva historiográfica, são numerosos os enfoques possíveis, a partir de diferentes disciplinas: sociologia, psicologia, antropologia, economia e outras mais. É, por excelência, um campo do conhecimento que requer multiplicidade de enfoques, vale dizer, é impossível estudá-lo em perspectiva unidisciplinar.

Para a disseminação e a entrada em voga da expressão “vida quotidiana” contribuiu enormemente o sucesso estrondoso obtido, desde o início, pela Coleção Vida Cotidiana, lançada a partir de 1938 pela tradicional Editora Hachette. Desde os primeiros lançamentos dessa coleção, tal foi o sucesso que não apenas seus livros passaram a ser traduzidos para diversos idiomas, mas também muitas outras editoras, em vários países, lançaram seriados claramente inspirados no modelo inicial da Hachette, para não dizer que copiados servilmente dele.

A editora fundada em Paris, no ano de 1826, por Louis Hachette, sempre se destacou por seu caráter inovador. Ainda no século XIX, aproveitando-se da expansão das redes ferroviárias, iniciou a venda de livros em estações de trem, chegando a possuir, em 1896, 1200 pontos de venda – as Bibliothèques de gare (Bibliotecas de estação) – em toda a França. Lançou numerosas séries de livros de grande vendagem, como as coleções La vie heureuse, Le Livre de poche e, mais tarde, La Vie quotidienne. Durante certo período, praticamente monopolizou os livros didáticos e os guias de viagem franceses. Sucessivamente, foi adquirindo e incorporando dezenas de outras casas editoras e expandiu sua área de atuação para outros países, sendo hoje uma multinacional. Atualmente ainda é a maior rede distribuidora de livros na França e em todos os países francófonos. Desde 2009, 51% de suas ações passaram para o controle de chineses

Ao público leitor em geral, o gênero “vida cotidiana”, lançado pela Hachette, despertou enorme curiosidade e, literalmente, fascinou. Os títulos publicados se multiplicaram, diversificando-se muito os temas abordados. Já são centenas, atualmente, e tudo leva a crer que continuarão se multiplicando os lançamentos.

Ao leitor mediano, não especializado, esse gênero de livro permite mergulhos em realidades sociais circunscritas no tempo histórico e no espaço físico, estudando-as e analisando-as em profundidade, desde os mais variados pontos de vista. Também aos leitores mais exigentes, mais especializados ou menos em determinado período histórico ou em determinada sociedade antiga, os livros da série atraem pelo seu poder de síntese e pela visão de conjunto que proporcionam.

Não é um gênero fácil. O autor de uma “vida cotidiana” necessita conhecer profundamente não só a história de uma época, mas precisa de conhecimentos pluridisciplinares muito extensos, sob pena de falhar redondamente no quadro que traçar.

Sirvam estes parágrafos como introdução aos comentários sobre o livro de Robert Flacelière, que veremos na próxima semana.

 

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Frase a destacar: A expressão “vida cotidiana” para designar um gênero literário e um tipo peculiar de abordagem historiográfica começou a ser usada em meados do século XX.

 

 

 

 

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