Realeza e santidade

Ao longo de todo o Medievo, a Igreja Católica se empenhou na formação dos quadros dirigentes da sociedade; mais precisamente, procurou plasmar a figura ideal do rei e do príncipe cristão. Cerca de mil obras pedagógicas intituladas “espelhos dos reis” ou “espelhos dos príncipes” (specula regum, specula principum) foram escritas durante dez séculos, procurando estabelecer essa figura ideal. O mesmo intuito pedagógico da formação de governantes ideais pode ser notado no grande número de reis, rainhas, príncipes e princesas elevados pela Igreja à honra dos altares, que passaram a ser venerados como santos e santas, ou beatos e beatas, sendo assim apresentados como modelos de virtude e boa conduta aos fiéis.

A conversão de Clóvis, rei dos Francos e membro da dinastia dos Merovíngios, está ligada à santidade por sua esposa, Santa Clotilde, e pelo fato de ter sido São Remígio o bispo de Reims que instruiu no cristianismo e batizou o rei no ano de 496. Assim se lê no relato feito pelo historiador e bispo São Gregório de Tours (c. 538-594):

“Todavia a rainha [Clotilde, princesa burgúndia católica] não deixava de pedir ao rei que reconhecesse o verdadeiro Deus e abandonasse os ídolos; mas nada o podia levar a essa crença, até que tendo surgido uma guerra contra os Alamanos, ele foi forçado pela necessidade a confessar o que sempre tinha negado obstinadamente (…) Então a rainha chamou em segredo São Remígio, bispo de Reims, suplicando-lhe que fizesse penetrar no coração do rei a palavra da salvação. O sacerdote, tendo-se posto em contato com Clóvis, levou-o pouco a pouco e secretamente a acreditar no verdadeiro Deus, criador do céu e da terra, e a renunciar aos ídolos, que não lhe podiam ser de qualquer ajuda, nem a ele nem a ninguém (…) O rei, tendo pois confessado um Deus todo-poderoso na Trindade, foi batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ungido do santo Crisma com o sinal-da-cruz. Mais de três mil homens do seu exército foram igualmente batizados.”  (Historiae Ecclesiasticae Francorum, l. II. Trad. Gaudet, J. Paris: Société de Histoire de France, 1836.)

Quase todas as dinastias europeias contam numerosos santos e santas entre seus membros. Para se ter ideia dessa como que conaturalidade entre realeza e santidade – elemento integrante da pedagogia da Igreja para formação dos governantes medievais – tome-se, muito ao acaso, um personagem medieval: Pedro III de Aragão, o Grande, rei de Aragão (1239-1285). Foi também rei da Sicília e de Valência, como Pedro I; e como Pedro II governou Barcelona. Era filho do grande rei Jaime I, o Conquistador (1208-1276) e da rainha Violante da Hungria (1215-1251), meia-irmã (por parte de pai) de Santa Isabel da Hungria (1207-1231). A dinastia de Arpad, à qual pertencia a mãe de Pedro III, reinou na Hungria desde o ano 1000 até 1301 e teve numerosos santos e santas, a ponto de ser considerada a família que maior número de santos deu à Igreja Católica. Pedro III foi casado com a Beata Constança de Aragão (1249-1302); desse casamento nasceram vários filhos, entre os quais a rainha Santa Isabel de Portugal (1271-1336). Pedro III era irmão de Violante de Aragão (1236-1301), casada com Afonso X de Leão e Castela, (1221-1284), filho de Fernando III de Castela, el Santo (1201-1252); era também irmão de Isabel de Aragão (1243-1271), casada com Filipe III de França (1245-1285), filho do rei São Luís IX de França (1214-1270). Jaime I, o Conquistador, fora casado em primeiras núpcias com Leonor de Castela (1190-1244), filha de Afonso VIII de Castela (1155-1214) e irmã de Berenguela de Castela (1180-1246) e Branca de Castela (1188-1252), respectivamente mães dos reis São Fernando III de Castela e São Luís IX de França. Vemos, pois, no exemplo desse monarca que estava, literalmente, cercado de santidade por todos os lados, como a pedagogia eclesiástica medieval procurava, pela força da exemplaridade, formar os reis. Utilizo aqui a figura de Pedro III de Aragão como exemplo, apenas porque tive que estudá-lo mais detidamente na minha tese de doutorado, mas teria sido possível citar inúmeros outros exemplos em dinastias europeias.

No caso concreto do Reino de Portugal, falei há pouco da rainha Santa Isabel, princesa aragonesa que casou com o rei D. Diniz. Recuando duas gerações na família real portuguesa, registro que três filhas do rei D. Sancho I também elevadas pela Igreja à honra dos altares: as Beatas Teresa (1175-1250), Sancha (1180-1229) e Mafalda (1195-1256). E, no século XV, também teve seu culto reconhecido pela Igreja o Beato Fernando de Portugal, conhecido como o Infante Santo (1402-1443), filho do rei D. João I e da rainha D. Filipa de Lencastre, e irmão do Infante D. Henrique, o Navegador (1394-1460).

Concluo estes apontamentos lembrando que estão sendo dados os passos preliminares, no âmbito da Arquidiocese do Rio de Janeiro, para a possível abertura do processo de beatificação da nossa Princesa Isabel (1846-1921). Irá adiante esse processo? Chegaremos, em nossos dias, a venerar a Redentora nos altares das nossas igrejas? O futuro, só Deus conhece.

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: Chegaremos, em nossos dias, a venerar a Princesa Isabel nos altares das nossas igrejas?

 

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