Sonho meu

Alê Bragion

 

Sonhar não custa nada, não se paga pra sonhar – dizia um samba enredo de outros tempos, de tempos em que o carnaval acontecia antes da páscoa. Pois, é. Queiramos ou não, é carnaval. É carnaval pós-páscoa e Tiradentes que se cuide – tem escola de samba aquecendo os tamborins aos pés da forca. É o carnaval da pandemia que não acabou (mas a gente finge que acabou e seguimos). É o carnaval da forca de Tiradentes no nosso pescoço: na passarela do samba mais de seiscentos e sessenta mil mortos pela Covid (e pelo desgoverno federal), olé olá! Bora sonhar então, que sonhar não custa nada – ou o quase nada que é a vida (que no Brasil da volta da inflação sob o efeito bolsolão vale menos que cinco cenouras).
O problema é que para um depressivo inveterado como eu, sonhar nada tem a ver com viver uma ilusão ou ter esperança – essa coisa meio “démodé” (para não dizer brega) que políticos, religiosos, livros de auto-ajuda (e “coaches”) amam. Lamento. Meus sonhos não estão no futuro – nem no “esperançar” de alguma coisa que nunca vai acontecer (São Paulo Freire que me perdoe). Para mim, o sonho é o agora, o hoje-insólito, o sem-sentido da vida, o existir como que num quadro de Dali. Calma. Eu sei que é sábado e não vou (acho) estragar (muito) a alegria da minha (quiçá) meia dúzia de leitores. Mas tenho por dever de ofício afirmar que a vida é sonho, como escreveu Shakespeare em “A Tempestade”.
Aliás, precisei envelhecer para entender melhor (acho que entendi, não sei) o que o Príncipe Próspero, no ato IV de “A Tempestade”, diz. (Para quem não conhece – duvido – ou não se lembra, ele diz: “tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”). Caramba! Eu aqui, na minha vida pequenina, no meio de um carnaval falso, só posso dizer que nunca senti tanto que a vida é mesmo um sonho que um da vai sumir num despertar às avessas.
Por outro lado, penso também que a minha precoce idade avançada mudou de alguma forma a estrutura geral do meu sonhar. Sonho hoje coisas que jamais sonhei – ou que a minha juventude não me permitia sonhar (talvez por falta das vivências necessárias). Além disso, no meu sonho-vida de agora sonho até usando efeitos da televisão e do cinema – com jogos de câmera, roteiro, clímax, sons incidentais e trilhas sonoras. (Outro dia, sonhei que dava partida no carro e colocava meus óculos de sol tendo ao fundo a Cavalgada das Valquírias, de Wagner – que logo se misturou ao tema de “Top Gun” assim que peguei a estrada sob o céu azul. Uma coisa horrível.).
Há algumas semanas, porém, tive um sonho lindo com uma amiga que não vejo há muito. Há poucos dias, sonhei com outra. Anteontem, sonhei com as duas, fundidas numa única pessoa que oscilava em personalidades e estereótipos. Dessa vez não havia fundo musical, mas o efeito imagético era surpreendente (e belo!). Depois disso, fui reler um pouco as anotações que fiz em algumas aulas que assisti sobre Freud e Jung e entendi que só o tempo e a ausência (frutos do amor e da saudade) poderiam me fazer sonhar assim. Já o que penso que meu inconsciente quis me dizer com esses sonhos eu vou guardar para mim – cantando (é carnaval) o lindo samba de Dona Ivone Lara.
Se a vida é sonho – e sonho é o tema desta crônica – lembro por fim que um dia comentei em uma aula a jovens professores e professoras sobre o filme que (muito ficcionalmente) conta a vida do gênio do piano Frédéric Chopin. Ao dizer à turma o nome do filme (“À Noite Sonhamos”) um aluno brincou comigo, cheio de testosterona e ironia: “de dia também, professor”. Que os deuses e deusas conservem sempre assim a juventude. É sábado. É carnaval. Sonhemos.
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Alê Bragion, cronista-sonhador desta Tribuna desde 2017

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