A saúde de nossa liberdade

José Renato Nalini

 

O Estado de direito de índole democrática, opção do constituinte em nome do povo, o único titular da soberania, é a concretização jurídica da liberdade. Voltaire e Kant disseram que “o homem é livre quando não tem de obedecer a ninguém, exceto às leis”.
Só que se pensava na lei como relação necessária que se extrai da natureza das coisas. Leis racionais, tendentes a favorecer o convívio e a atenuar – ao menos um pouco – a carga cruel de vicissitudes que recai sobre os ombros humanos.
Numa formulação ideal, o legislador seria o mais importante dentre os detentores de poder. É dele a prerrogativa de estabelecer as regras do jogo. Por isso a convicção arraigada na consciência coletiva, de que não há limites que possam vir a ser postos aos poderes do legislador. Isso é decorrência da concepção de soberania popular e do anseio democrático.
Só que a crença de que a submissão de todas as ações do Estado à legislação equivale à preservação do Estado de direito é questionável. Estado de direito não é sinônimo de Estado legal. A atuação de um governo pode ser formalmente legal, mas não se conformar ao estado de direito.
Parece que isso ocorre de maneira sistemática no Brasil de nossos dias. Quando o Parlamento permite que ingressem no país centenas de herbicidas venenosos, proibidos em seus países de origem, existe uma aparência de legalidade. Mas será que isso representa atendimento a valores superiores, como a saúde da população e a preservação ambiental?
Essa percepção não é nova. O insuspeitíssimo F. A. Hayek, na celebérrima obra “O caminho da servidão”, já advertia há quase oitenta anos: “A lei pode tornar legal aquilo que para todos os efeitos permanece uma ação arbitrária e, para possibilitar a gestão central das atividades econômicas, é-lhe necessário fazer isso. Se a lei declara que uma autoridade ou comissão podem agir da maneira que lhes convém, todas as ações destas serão legais – mas não estarão por certo sujeitas ao estado de Direito. Conferindo-se ao governo poderes ilimitados, pode-se legalizar a mais arbitrária das normas; e desse modo a democracia pode estabelecer o mais completo despotismo”.
Não se trata de um conflito entre liberdade e direito. John Locke já esclarecera não poder existir liberdade onde não há leis. O conflito verifica-se entre diferentes espécies de lei – tão diferentes entre si que quase não merecem o mesmo nome. Uma é a lei que fundamenta o estado de Direito, princípios gerais estabelecidos de antemão, “regras do jogo” que permitem ao indivíduo prever como será empregado o aparelho coercitivo do Estado, ou o que ele e seus concidadãos poderão fazer, ou serão obrigados a fazer, em circunstâncias dispostas em lei. A outra espécie de lei dá à autoridade poder efetivo para agir da maneira que lhe parecer conveniente. É evidente, pois, a impossibilidade de manter o estado de Direito numa democracia que pretendesse decidir todo conflito de interesses, não de acordo com normas previamente estabelecidas, mas segundo sua proximidade com o poder, com sua confissão religiosa, com sua ideologia, seja ela obscurantista ou não.
Numa República de prolífica produção normativa, onde quase tudo está escrito na Constituição, existe lei demais e observância de menos. A começar daqueles que são pagos pelo povo para servir a seus interesses. Houvera obediência à Constituição, a “lei das leis” e o Brasil não seria o pária ambiental de que alguns energúmenos se orgulham. Ao contrário, cuidaria de zelar por suas florestas, para delas extrair o imenso volume de recursos disponíveis para os créditos de carbono. Ou o mundo se descarboniza rapidamente, ou seu fim será bastante próximo. A ponto de ainda encontrar vivos alguns de seus mais cruéis detratores.
Um Brasil de quarenta partidos, com mais outros quarenta a “pedir pouso” junto ao TSE, não pode dar certo. As reformas necessárias não foram feitas. O “Centrão” não deixa. Quer exaurir as tetas da viúva, já na UTI com este combo de crises. E o Império ainda resiste na consciência coletiva, embora privado do injustiçado estadista Pedro II.
A insensatez coletiva, com certa conivência do sistema Justiça, parece encaminhar o Brasil para um totalitarismo tangido pela ignorância. Hayek já advertia para o equívoco “da ideia de que os aspectos mais repelentes dos regimes totalitários se devam à casualidade histórica de esses regimes terem sido estabelecidos por canalhas e bandidos. Não devemos iludir-nos supondo que todas as pessoas de bem são forçosamente democratas ou desejam fazer parte do governo. Muitos prefeririam confiá-lo a alguém que reputam mais competente”. E a omissão dos bons deixa o vácuo para que cheguem ao poder os maus. E daí não querem mais sair do bem bom!
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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