A Paixão

Camilo Irineu Quartarollo

 

No julgamento de Jesus não conseguiram nem duas testemunhas coerentes para o acusar, mas chamaram uma turba raivosa que o condenou. Um “plebiscito”, no qual Pilatos pergunta ao povo presente e solta Barrabás. É cediço que são os partidários do templo, manietado pelos sacerdotes de Caifás. Esse público “formou maioria” e os seguidores de Jesus ficaram de fora do circo de Pilatos.
A justiça não é feita simplesmente por maioria. A maioria pode ser um atentado à justiça! Não existe justiça sem processo legal e ampla defesa. Jesus já desfizera a maioria dos apedrejadores contra a adúltera e outros tipos de falsos juízos que cegam as pessoas contra os perseguidos do Sermão da montanha, indefesos, marginais da sociedade, mulher pobre, gay, trans, suspeitos. Muitos presos e outros mortos, aplicando-se linchamentos como faziam com as adúlteras, em nome da tradição, segurança e família.
Na noite anterior à execução, na casa de Anás, sogro de Caifás, João acompanhava discretamente o preso e faz entrar Pedro no recinto, o qual destoou mais que galo de fakenews. Jesus se defendeu diante do assombroso Anás naquela inquirição, noturna e irregular. O acusado alega que pregava às claras, de forma pública. Anás, sem libelo acusativo, por crime indeterminado, permite ao guarda torturar o prisioneiro. No dia seguinte, com Caifás o juízo é remontado mesmo sem testemunhas ou provas e, ora, sob crime confesso do réu!
Dias antes, a gota d’água para Caifás fora a expulsão dos vendilhões e cambistas do templo. A coleta de Páscoa era vultosa no maior afluxo de peregrinos à Jerusalém, temiam que Jesus comprometesse o “bom negócio”. Tinham de prender o arruaceiro, e antes da páscoa, sem tumultos, ou melhor, às escondidas.
O tribuno Pilatos não viu objeto de ação, nenhum crime tipificado, viu um simples filósofo iludido, que nem manejava a espada. Os evangelhos demonstram que Jesus tinha um refinado senso da realidade e ações de defesa, como a preparação da ceia num estratagema de despiste a que Judas só a soubesse mais tarde e, por fim, depois das últimas recomendações aos discípulos Jesus se entrega à hora fatal, e sabe, à morte cruel.
O tribuno temia César e o seu legado na Síria, Lúcio Vitélio. Sabia que os sacerdotes podiam destruí-lo com suas querelas e o fariam, alegando amizade com César.
Os sacerdotes queriam o prisioneiro crucificado, quebrado, morto e jogado insepulto às feras selvagens, consumido na infâmia e anonimato. Entretanto, Pilatos contrariou os sacerdotes saduceus com a inscrição INRI na cruz e depois deu o corpo íntegro aos fariseus e cristãos ocultos Arimateia e Nicodemos, para o sepultarem, acendendo a ira dos saduceus.
A humanidade continua a matar. A orbe cristã ainda não digeriu o evento da Paixão de quem chamou a Deus de pai. Se tivesse digerido não teríamos as profusões de artigos e livros sobre, inclusive esta minha singela, pífia e passageira abordagem.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

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