As (s) cem (des) razões do Amor

Alê Bragion

 

Daniel Pennac, em seu curioso livro intitulado “Como um Romance”, nos adverte que há alguns verbos que não cabem ser utilizados no imperativo – dentre eles o verbo ler e o amar. De fato, de nada adianta ordenarmos a alguém que ele leia. Afinal, a criatura – mistificando – poderia apenas correr os olhos sobre o papel, fingindo decodificar períodos e frases sem realmente buscar entendimento e sentido. Porque a leitura, como obrigação, é impossível. Os professores sabem disso (e se ainda não sabem deveriam saber). Nessa mesma seara do imperativo irrealizável tampouco podemos exigir, segundo Pennac, que alguém nos ame. Já pensou? Faça um teste e diga a alguém: “exijo que você me ame. A partir de hoje você amará somente a mim.” Funcionaria? Cruz-credo. Sentenciar-se o amor como uma pena dada seria subverter o princípio do jogo amoroso, seria racionalizar o que se manifesta apenas e tão somente – como cantou Chico Buarque em “Joana Francesa” – dans le sang et sur la peau. Sabem os amantes (e se não sabem também deveriam saber) que o amor não é, nem pode vir a ser, um imperativo categórico.
Foi Drummond quem afirmou que o amor “é dado de graça, é semeado no vento” e que “foge a dicionários e a regulamentos vários”. Mais do que isso, Drummond indiciou que só amamos e somos amados no momento em que dizemos ou ouvimos que o somos – nem antes nem depois. Por isso, salienta o mestre de Itabira a constância necessária do exercício verbal da materialização do amor pela palavra: “ouvindo-te dizer eu te amo/creio, no momento, que sou amado/No momento anterior e no seguinte,/como sabê-lo?” O amor não se troca, não se conjuga, não se empresta, não se negocia. O amor se sente e se concretiza na sintaxe fundamental do existir, no verbete primordial do instinto mais primitivo. Sem gramáticas, compêndios, súmulas ou explicações. Amamos exageradamente, talvez, e ainda segundo Drummond, porque muito possivelmente não amamos “bastante ou demais” a nós mesmos. Porque – e isso também nos ensinou Paulo, em epístola mais que conhecida – “o amor não se ensoberbece, não se regozija” e “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Só não sei se ele jamais acabará. Esse negócio de amor sem fim já é outra história.
Padre Antonio Vieira, todavia, lá nos confins do século XVII, foi quem – talvez – melhor tenha definido as sem razões do amor (e isso, obviamente, séculos depois de Paulo e tantos outros antes de Drummond). Segundo Vieira – em belo e longo “Sermão sobre o Amor” – aquele que ama para ser amado não ama verdadeiramente, apenas negocia – apenas agrada para ser igualmente agradado. O amor, aí, é um produto: um negócio. Ainda segundo Vieira, aquele que ama porque é amado também não o faz em sua plenitude, porque então o amor vira moeda de troca. O amor, aí, é retribuição: agradecimento. Para Vieira, verdadeiramente ama quem ama por amar – quem ama sem esperar reconhecimento, troca, aceitação ou retribuição. Amar, aí, é um exercício íntimo de plenitude e – muitas vezes – de silêncio. Mais amou Cristo a Judas, nos lembra Antonio Vieira, do que a todos os seus outros discípulos – mesmo sabendo que amava infinitamente a seu próprio traidor. Amar, aí, é absolutamente devoção sobre o que não tem em si qualquer razão de ser: é entrega total e absoluta.
Triste. Entre Drummonds, Chicos, Paulos e Vieiras percebemos que o amor se refina, se decanta, se purifica em algo que – a certos modos de visão – parece infinitamente distante de nós (seres apegados, ciumentos, possessivos). Triste. O amor, por isso, pode também nos causar tristeza. Certo? Se não amamos na virtude do sentir da liberdade da energia que faz o pelo se eriçar sobre a pele, amamos de um jeito doloroso, com excesso e sem virtude. Amamos, talvez, com uma intensidade neurótica. Triste? Mas não nos preocupemos tanto. Nada de ansiedade. Porque, como também cantou (e canta) o gênio Chico Buarque: “nada é para já. O amor não tem pressa, ele pode esperar, num fundo de armário, na posta-restante, milênios, milênios no ar”.
Amemos. Porque amanhã é sábado.
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Alexandre Bragion, poeta

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