Bilhetes de Deus

José Renato Nalini

 

Quem tem olhos para ver, não encontrará dificuldade para reconhecer recados do Criador. Se somos cegos e surdos ante a clamorosa miséria que aflige a maior parte de nossa população, qual a chance de enxergarmos as filigranas da criação, as pequeninas coisas que nos sugerem a racionalidade do design inteligente?
Confesso-me ardoroso amante da natureza. Tudo nela me seduz. É inacreditável pensar que acordo todas as manhãs, nesta insensatez chamada São Paulo, com sabiás de incrível sonoridade, bem-te-vis insistentes e outros cantos de pássaros que não identifico.
No pequeno espaço mantido para preservação, na minha querida Jundiaí, onde repousam os meus e onde repousarei um dia, ouço tantos maviosos sons, que me reforçam a indignação diante de quem destrói o verde. É preciso não ter consciência, ser alguém desprovido de coração, para cortar uma árvore, impiedosamente, destruindo o que o ser humano é incapaz de fazer e que a generosa natureza oferece gratuitamente.
Para aqueles que só pensam em dinheiro, saibam que a manutenção de áreas cobertas por vegetação nativa pode gerar lucro. Em países civilizados, a contemplação de pássaros, sua identificação, conhecer mais sobre suas famílias, espécies, origens e costumes não é só divertimento. É atividade prazerosa e rentável.
O cultivo de flores e de frutas está no DNA de Jundiaí. Já foi chamada “terra da uva”, embora vinhedos tenham cedido espaço para conjuntos habitacionais de péssima estética. Há de se acreditar na juventude mais sensível, para recuperar espaços ociosos, para embelezar aquilo que a ignorância e a falta de gosto dos que se dizem escolarizados provocou.
A qualidade de vida de uma cidade não está no seu adensamento. Está nas condições ideais que envolvem abundância de água tratada, reservas naturais, arquitetura que não agrida o ambiente, multiplicação de parques, jardins, pomares e bosques urbanos.
Espíritos superiores respondem a tais anseios. Os rústicos sequer entendem este discurso. Os sensíveis são os que desvendam os bilhetes que Deus semeou na exuberante biodiversidade a que temos acesso e que mais estragamos do que preservamos.
Em tudo se pode encontrar recados divinos. Pense-se, por exemplo, na flor do maracujá. A Passiflora, cuja simbologia foi tão bem descrita pelos jesuítas. “Os três estigmas representavam os três pregos da Cruz; os cinco estames, as cinco chagas de Jesus; as dez tépalas, os dez apóstolos na crucificação; a corona, a coroa de espinhos; e as gavinhas, os açoites com que Cristo foi flagelado enquanto carregava a cruz até o Calvário”. Esta descrição é de Oliver Sacks, no livro “Diário de Oaxaca”. Ele acrescenta: “Se os bons padres possuíssem um microscópio, teriam encontrado outra dezena de estruturas e simetrias que poderiam interpretar como símbolos da crucificação inseridos por Deus nas células das plantas”.
É preciso “querer enxergar” para extrair lições. Como a dos observadores de pássaros. São seres especiais, que detectam aquilo que tantos outros não conseguem, e não por falta de visão. É por falta de sensibilidade, de talento e dom para se maravilhar com a riqueza disponível e pela qual nada se paga. Para os observadores que se extasiam diante das inumeráveis espécies de passarinho que ainda sobrevoam o que restou de nossas matas – e que se abrigam nas poucas árvores disponíveis nessa insana conurbação que tornou nossas cidades ambientes adversários da boa qualidade de vida – cada exemplar visto e identificado é um prêmio. Os que não obtêm esse milagre da descoberta não padecem de falta de acuidade visual. O problema está no cérebro. Pois “os olhos precisam ser educados, treinados – é necessário desenvolver o “olho” de observador de pássaros, ou de geólogo, ou de pteridólogo”, para obter a recompensa de se extasiar diante desse tesouro, o ambiente natural.
Como seria bom que a infância e juventude jundiaiense assumisse o compromisso de fazer com que este município fosse também a cidade das flores, dos pássaros, das frutas e das abelhas. Uma cidade verde/azul, pequeno pedaço paradisíaco a compensar a tragédia das submoradias, da ocupação irregular, do desastre ambiental que é o mais típico sinal da demência coletiva.
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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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