XV, paixão que não morre

Cecílio Elias Netto

 

Há quem diga o coração humano ser capaz de apenas uma paixão por vez. Sempre discordei disso e mais longe fui: para mim, quem assim pensa nunca amou ou tem medo de contar. Por mais se diga continuarmos vivendo em guerras, em discórdias, em competições até mesmo ferozes, o coração lateja-nos por amor. Ou de amor. E, quando – ou se – surge a paixão, nada há que a contenha. Paixão é privilégio e castigo.
De que me lembro, duas das minhas tantas paixões aconteceram-me antes dos 10 anos de idade. E foram fulminantes. A primeira, quando meu pai – sempre ele em minhas alegrias – me levou para ver um jogo do Corinthians no velho Parque São Jorge. Eu tinha sete aninhos. Até São Paulo, as estradas eram de terra, a Anhanguera, em obras. Ia-se de automóvel e – ora, vejam! – vestia-se um sobretudo para driblar a poeira do caminho. Não foi pelo Corinthians que me apaixonei. Foi pela torcida. Assustei-me, encantei-me por aquela explosão humana inimaginável para a cabecinha infantil.
Em 1949 – aos meus nove anos – foi o XV, nosso XV, antes mesmo de ele ser o “Nhô Quim”. Éramos os primeiros campeões do interior paulista ingressando na série principal do futebol! Até hoje, guardo a escalação daquele inesquecível exército. Lembro-me de jurar, para mim mesmo, vir a ser o substituto de Idiarte, o herói-símbolo do XV, ao lado de Gatão e outros campeões. Era, porém, apenas vontade fervilhante. Pois, eu já estava muito míope lá pelos meus 10 aninhos.
Paixões machucam, doem, fazem sofrer. Nelas, há, sempre, a enfermidade. “Pathos”, doença. Logo, paixão é, sim, doença da qual, porém, não se quer escapar. Desde, no entanto, se esteja no auge dela, essa loucura que é êxtase e morte. O XV é minha paixão recolhida e eterna. Uma delas. Vivi a maior parte de minha existência na loucura de acreditar fosse o meu sangue, a minha carne. Meu pai era ainda mais enlouquecido. No seu carrinho antigo, acompanhávamos o XV a cada jogo, não importava fosse em São Paulo, Campinas, Jaú, Bauru. Aquele homem tão querido brigava pelo XV aos tapas, especialmente em jogos contra Guarani e Ponte Preta. A proverbial serenidade dele transformava-se em fúria pelo XV. E eu fui contagiado, adorável e sofridamente contagiado.
Na década de 1950, a televisão engatinhava. E parecia um sonho ver a Tevê Tupi transmitir um jogo do formidável XV no campinho da Rua Regente Feijó. Ah! aquele pequenino estádio, a famosa “Panela de Pressão”. Que alegria, que espírito de comunidade – para reformar o humilde campo, adequando-o às exigências da Federação Paulista de Futebol. Pois não bastava apenas ser campeão: era preciso ter um estádio. Que emoção, apenas de lembrar! Aos meus nove aninhos, ajudei aquela gente toda a, dia e noite, trabalhar para a grande reforma. Carreguei tijolinhos, dando-os a meu pai, vendo-o – com pá e cimento, aprendiz de pedreiro – erguer aquele muro.
Quando se vendeu o estádio – para um supermercado pousar no terreno onde correra sangue, suor e lágrimas de nossos heróis – apressei-me e “roubei” um tijolo daquelas ruínas. Um, apenas um. Imaginei pudesse ser um dos que eu ajudei a colocar naquele templo destruído. Hoje, ele está entre objetos para mim preciosos, através dos quais imagino poder preservar um pouco, só um pouquinho da imensa história de nossa cidade, de nossa gente amada. Naquele tijolo, guardo minha paixão pelo XV.
Juro que tento esquecer. Mas, nas horas mais desafiadoras, a paixão retorna, incandescente e, por isso mesmo, doída. Vai, “Nhô Quim” tão amado! Voltemos para o lugar que sempre foi nosso. A “reza é braba”.

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

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