A sordidez como tática

José Renato Nalini

 

Custa a crer que em pleno século 21, haja comportamentos cruéis e mesquinhos, protagonizados por pretensos eruditos. Mas infelizmente acontece. Em pleitos que deveriam ser elevadíssimos, abertos a intelectuais aptos a chegarem ao Olimpo acadêmico. O inimaginável acontece. Aquilo que deveria ser um elegante duelo entre personalidades qualificadas, em disputa por mais um título, converte-se numa arena imunda. Maledicência, ironia, sarcasmo e mergulho torpe no lodo da difamação.
Em que sombrio recanto do cérebro ardiloso se abriga essa maliciosa estratégia de enlamear a honra alheia? Uma campanha para integrar uma Instituição respeitável deveria também timbrar pela respeitabilidade. Observância das regras cavalheirescas de um jogo limpo. Franqueza, mas polidez. Em vez disso, o objetivo passa a mudar o foco. Não mais enaltecer os méritos próprios, mas demolir a reputação do adversário.
Nesse vale tudo, fantasia-se, criam-se narrativas e até se apela para preconceitos que hoje foram tipificados como crime. Não há limites para a voracidade com que se almeja chegar ao topo. Importa pouco, verdadeiramente nada, que se mutile o caráter de quem também concorre e se apresenta com credenciais para uma disputa que se presumia fosse altaneira.
É impressionante a capacidade pútrida de golpear baixo, mas não menos estupefaciente a reação de quem aceita a versão e se acumplicia na campanha sórdida. Serão os pérfidos também covardes? Houvera ética, não seria o caso de chamar o detrator às falas? São esses os métodos hábeis à consecução de um intuito legítimo?
Uma instituição que tem juristas sabe da imprescindível paridade de armas, da amplitude de defesa, do contraditório expresso no pacto fundante. Não ocorreu a qualquer deles promover uma acareação? A perfídia serpenteia por redes sociais, por sussurros, por diz-que-diz, por gossips, tudo fica no território do deboche. E a ferida profunda que atingiu o alvo? Fica tudo por isso mesmo?
Uma pugna adversarial com classe, a evidenciar a categoria sobranceira de quem nela se empenha, engrandece a instituição. A sordidez como tática a debilita.
A estratégia da disseminação de narrativas de forma sub-reptícia, para escantear – ou melhor, nocautear – um concorrente, não dignifica aquele que dela se serve. É esse o atributo que o credencia a ingressar no fechadíssimo clube dos superlativos?
Verdade que esses embates ocorrem até no Primeiro Mundo. Quem se detiver a estudar a história da Academia Francesa, paradigma para quase todas as outras no lado ocidental do mundo, verá que ali também os acadêmicos, não raramente, costumavam se opor ao ingresso de certos candidatos. Mas a conduta era completamente outra.
Um desses pretendentes indesejáveis, Paul Morand, era alguém preconceituoso, claramente antissemita e homofóbico. Juntamente com Paul Chardonne, lamentava o crescimento da miscigenação, a ascensão dos povos de cor, além de temerem ambos que os chineses viessem a ocupar a cidade litorânea Roscoff, na região da Bretanha.
Quando Paul Morand apresenta, em 1957, sua candidatura para a Academia Francesa, tal tentativa suscitou reações de hostilidade e, até mesmo, uma revolta liderada por François Mauriac, nessa época bastante envolvido no combate anticolonial. Mas qual a atitude de Mauriac? Elabora uma petição, assinada por outros onze membros da Academia Francesa. Identificam-se, apõem seus respeitáveis nomes num texto em que explicam o motivo pelo qual Morand não seria bem-vindo.
Paul Morand não foi, efetivamente, eleito. Atribuiu a derrota aos “expurgadores retardados, aos protestantes, aos franco-maçons, aos fracassados de todos os tipos que haviam obstruído seu caminho”. Promete recandidatar-se na próxima oportunidade. E ela surgiu, com o falecimento de André Siegfried. Todavia, nesse meio-tempo retorna ao poder o General Charles De Gaulle, que influencia nova e definitiva recusa, pois não seria conveniente apoiar uma candidatura hábil a suscitar ódio.
Sim: as Academias, antes de tudo, têm de ser casas de bom convívio. Entre seres que pensam de forma diferente, nutrem distintas concepções de vida. Todos heterogêneos e irrepetíveis. Mas vinculados por um sentido de comunhão em torno a um ideal. No caso, o da literatura, da escrita, das artes e da cultura em geral.
Assim ocorreu em França. Sinceridade, verdade, coragem de assumir acusações. No Brasil, parece que o declínio dos valores intensificou-se e atingiu espaços nos quais não poderia estar.
A quem foi injustiçado, é oportuno recordar: injustiça, melhor sofrê-la do que causá-la. O tempo, “Senhor da razão”, mostrará novos caminhos.
Tudo passa, só Deus não passa, proclamava Teresa D’Ávila, Doutora da Igreja.

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022.

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