Dramas da emigração: o sino da minha aldeia

Armando Alexandre dos Santos

 

Tratei, no meu último artigo, das jovens recém-casadas que, na Ilha da Madeira, viam seus maridos partirem rumo ao desconhecido poucos dias depois do casamento e por anos e décadas a fio ficavam à espera do retorno do cônjuge, ou pelo menos de notícias dele. Trata-se, sem dúvida, de um pungente drama existencial o dessas numerosas “viuvinhas”. Recordo que certa ocasião eu estava fazendo uma conferência sobre o Arquipélago da Madeira e sua influência no povoamento de São Paulo quando, de passagem, me referi ao drama dessas viuvinhas. Um dos assistentes, um senhor português, comoveu-se com o que ouvia e começou a chorar. Era um homenzarrão corpulento, de idade madura, com enormes bigodes negros, mas chorava soluçando como uma criança, e dizia: “Sou mesmo uma manteiga derretida…”.
De fato, as “viuvinhas da Madeira” constituem um dos mais pungentes “dramas da emigração”. Mas há muitos outros. É sempre traumático ver-se alguém transplantado, de repente, do torrão natal, dos ambientes e círculos sociais a que está acostumado, para uma terra nova, povoada por desconhecidos e com hábitos e cultura completamente diferentes.
Vou recordar hoje um episódio que li há muitos anos. Não recordo o autor. Nem sequer me lembro se era o relato de um fato realmente acontecido, ou se era um texto ficcional de conto ou romance. Todos esses pormenores se perderam nos desvãos da minha memória. Mas o episódio em si, conservo-o bem presente no espírito. E aqui o relato aos meus leitores, deixando bem claro que sou apenas retransmissor de uma lembrança remota proveniente de leitura antiga. Não me pretendo autor, pois.
O episódio teria ocorrido em Buenos Aires, num bairro popular muito pobre, praticamente uma favela. Um sacerdote foi chamado a atender um moribundo, que desejava confessar-se e receber os Sacramentos antes de morrer. Ao entrar no casebre, viu que tudo era pobre, era muito pobre, mas havia, junto ao leito do enfermo, um objeto contrastando com tanta pobreza: um monumental relógio de pé, com caixa de madeira envernizada, pêndulos dourados protegidos por fino cristal bisoté, o mostrador com os ponteiros muito bonitos, de metal trabalhado. Sem dúvida, era um artigo de alto luxo. Por que estaria ali, naquele local, um objeto digno de figurar no salão nobre de qualquer residência apalaceada da aristocracia portenha?
O sacerdote cumpriu seu dever. Atendeu o moribundo. Ouviu-o em confissão, consolou-o, absolveu-o, ungiu-o com os Santos Óleos. Mas, enquanto cumpria zelosamente todas essas etapas do seu ministério, não podia deixar de se interrogar acerca do relógio. Do misterioso relógio, tão deslocado naquele ambiente.
Afinal, depois de cumpridos todos os ritos, já ia retirar-se quando, notando que o enfermo ainda conseguia falar com relativa facilidade, não resistiu mais e perguntou que relógio era aquele. – É o sino da minha aldeia!, respondeu o homem. – O sino da sua aldeia? Como assim?, indagou o padre.
O homem, então, contou a história do relógio. Era uma história muito bonita, muito tocante, que tocava a fundo no seu drama existencial. Contou que nascera numa pequenina aldeia de Portugal, onde havia uma igrejinha que sempre tocava o sino cada vez que um dos moradores entrava em agonia. Era um toque dobrado que todos conheciam. Todos também se conheciam, no minúsculo povoado, cada doença de um aldeão era conhecida e acompanhada por todos como se se tratasse de um acontecimento na própria família. Quando o sino da agonia começava a tocar, não havia dúvida, todos sabiam “por quem os sinos dobram” – para usar a bem conhecida expressão que deu nome ao romance de Ernest Hemingway, em 1940, e três anos depois ao filme clássico de Sam Wood, com Gary Cooper, Ingrid Bergman e Akim Tamiroff no elenco.
Contou que saíra de Portugal ainda moço e se dirigira à capital da Argentina, na esperança de fazer fortuna e retornar à aldeia para que, quando chegasse sua derradeira hora, também partisse desta terra ouvindo aqueles badalos do sino da aldeia e sentindo a consolação de saber que todos os vizinhos, àquela hora, estavam rezando por ele.
Infelizmente, a vida não lhe tinha sido fácil na Argentina. Fracassara nos negócios e, embora trabalhando com afinco, nunca saíra da pobreza. Desistindo do sonho de ficar rico, começou a juntar suas parcas economias, para poder retornar a Portugal. Mas as economias eram parcas demais e o sonho de retornar à Pátria perdida cada vez mais distante. Os anos foram passando e, cada vez mais, tornava-se claro que o pobre homem jamais conseguiria recursos para retornar à aldeia. Isso o afligia sobremaneira: como morrer, sem ouvir o sino da aldeia?
Certo dia, enquanto caminhava por uma rua central de Buenos Aires, ouviu o sino de sua aldeia. Era o mesmo som, o mesmo timbre, sem a menor dúvida. Espantadíssimo, não sabia de onde vinha aquele som milagroso. Não podia crer, mas afinal descobriu. Vinha de uma relojoaria de luxo. Entrou, viu o magnífico objeto e perguntou o preço. Era alto, alto demais. Mas os anos que economizara bastavam para pagar a maior parte do objeto. Sem hesitar, entregou todas as suas economias e contraiu uma dívida, que depois escrupulosamente, mês a mês, com imenso sacrifício foi saldando até pagar por inteiro.
– Foi muito difícil, senhor padre, mas não me arrependi. Estou morrendo longe de onde nasci. Mas morro feliz, ouvindo o sino da minha aldeia – concluiu.
Nesse momento, o relógio imponente começou a dar suas badaladas. O moribundo fechou os olhos… e nunca mais os abriu. O sacerdote ministrou uma última absolvição, deu uma última bênção e depois saiu, com os seus olhos inteiramente banhados em lágrimas.

___

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima