Poesia-crônica do som em fúria

Alê Bragion

 

Qual som é o som que vem da guerra? O grito de horror que serpenteia a teia feita de corpos caídos pela rua que mais nenhuma calçada margeia? Qual berro é o seu berro quando um míssel cai sem erro sobre os alvos, a quilômetros, que ele enterra? Sentido. Sentidos. A guerra, dizem, começa pelos ouvidos.
Silêncio agora. Às vezes, porém, é fato que algumas guerras não fazem tanto barulho – especialmente quando o entulho que geram é feito de corpos que eram de gente pouco conhecida, de vidas renitentes de viver a vida – mesmo que esquecidas – num mundo que só dá conta das almas mais caras e fantasiosamente mais lindas. Sentidos? Sentido? Há guerras em que o gemido dos que morrem – a depender do continente – quase nunca é percebido.
Agora ouço, no entanto, pela tevê dos bem-nascidos, ouço a explosão em clarão que mal se vê. Depois, surge uma mãe partida ao meio que segura em duas partes as mãos de suas crianças que morrem e ardem. Fecho os olhos, mas vejo pelo que escuto. O agudo da agonia se mistura à neve da paisagem fria. Um cão em surto, numa gaiola, urra enquanto seu fim não vem. Uma sirene toca. Há vozes em convulsão. Há convulsão também em mim que a todo custo tento desligar a televisão e àquilo dar um fim.
Silencio. Mas não há silêncio, não. Há crianças que ainda choram e seus choros caminham entre países sangrando a dor da perda de seus pais e raízes. Sim. Ouço o choro que vem da Europa e me detém. Mas ouço chorarem também na Síria, no Congo, no Iêmen, no Afeganistão. Choram crianças semitodas, em semitons, longe de quem não as vê, em polifônica escala de desafortunada consumação.
Choram no meu país também as crianças, sem público e sem comoção. Choram no meu estado, na minha cidade, na minha rua – vítimas que são de guerras estúpidas e sempre espúrias em busca de tudo o que os poderosos lhes tiram com as mãos. Aliás, o que ouvem os homens atrás de suas gravatas nos seus escritórios e gabinetes sem sinetes? O que ouvem os oligarcas russos, os magnatas americanos, os presidentes indecentes, os plutocratas ausentes – todos donos de cada guerra que em si encerra um som terrível e para sempre sem fim: único, úmido e quente, feito de fúria, sangue e vibração?
Perdão. Meus ouvidos, incapazes, não selecionam os que sofrem nem absolvem os que matam. Rasgam eles a partitura absurda dos experts, dos teóricos belicosos, dos estrategistas políticos, dos que justificam os timbres da morte com qualquer ideologia ou racional satisfação. Não. Não há desculpas nem melodias ludibriantes de sereias que me façam ouvir outra nota mais concreta do que a da entonação triste dos que se vão.
Se há lados, alados são o que tombam ao grave retumbante das bombas-explosão – pois vilão e vítima destoam-se facilmente em seus falsetes a quem quer reconhecê-los, bastando-se atentar para aos que disparam os tiros que estilhaçam o existir em ricochetes.
E enquanto o som do terror ergue suas trevas, por fim (todavia), só pode haver ao ouvinte – por mais surdo que o seja – uma única clara certeza: uma guerra, em qualquer canto, é só e sempre mais uma maldita guerra.

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Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017.

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