O grande cara de pedra

Camilo Irineu Quartarollo

 

Buster Keaton foi um mestre do cinema mudo com suas gags, corridas, fugas, quedas e circunstâncias inusitadas, num pastelão que hoje somente se fariam com dublê. Keaton era dublê, ator, diretor e nas cenas inusitadas mantém a mesma expressão facial. Ficou conhecido como o grande cara de pedra, sem expressão de rosto, olhar desfocado e não reativo, incógnita.

Em seus filmes Keaton passa por circunstâncias de acidentes (ou trapalhadas), dos quais o público acompanha o personagem, cuja inexpressão facial funciona tal um espelho ao espectador que projeta suas aspirações sentimentais, sensoriais e morais, conhecido atualmente como o Efeito Kuleshov.

Os estudiosos dizem que Keaton preconcebeu intuitivamente a experiência de Kuleshov. O cineasta russo faz seu experimento em sala de cinema para um público comum. Em primeiro plano aparece o ator em close antes das cenas de um prato de sopa, de uma menina morta e, por último, o close antes da cena de uma mulher no divã. Embora em todas as montagens de cena o ator estivesse com a mesma e única expressão no rosto, o público convidado viu expressão de fome na primeira cena com a sopa, na segunda cena viram no ator expressões de sofrimento e tristeza e, no último close do ator, um desejo libidinoso manifesto na face dele.

Hitchcock explica o uso do close e recortes de cena na reação do público. Se aparece um ator em close, sério, e depois corta para a cena de uma mulher num jardim com uma criança e volta ao close do ator, agora sorrindo, a conclusão é a de que o ator em close é uma pessoa bondosa. Porém, se aparecer o ator em close antes, sério, e após uma cena de jardim com uma mulher se insinuando e fechar novamente em close ao ator, agora sorrindo, vai denotar malícia numa linguagem construída pelo close. Ceio que na nossa cabeça construímos concepções por um encaixe “perfeito” à nossa ideia de necessidade básica, perdas e desejos, como demonstra Kuleshov.

Em Chaplin se percebe a ingenuidade do seu personagem Carlitos, que reage sempre que sofre. Não é autômato, suas mazelas estão à mostra e se confundem com a sua humanidade de miserável. Buster Keaton parece apático, entretanto, o faz como mestre, não por cinismo ou porque não tinha empatia, mas dentro de uma concepção técnica.

Esses recursos de imagem farão parte das campanhas políticas nas redes sociais e tevê, para exibir o prato, a criança e a mulher no drama brasileiro de 2022. Como seria o close de Keaton diante da vacina, da fome, do analfabetismo, do desmantelamento do Estado brasileiro? Inexpressivo? Não, creio que diante dessas realidades até mesmo o grande cara de pedra do cinema mudo gritaria.

Não se confunda o ator Keaton, com os caras de pau, cínicos, os quais se deixam corromper nas suas profissões ou na política, fingindo a inexpressão ou dissimulando no olhar de lado, alheios às consequências perversas.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros.

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