A humanidade desacolhida

Camilo Irineu Quartarollo

 

O fotógrafo suíço René Robert que saiu caminhar pela rua Turbigo, centro de Paris, desmaiou e foi encontrado morto no chão depois de nove horas por uma moradora de rua. Hipotermia foi a causa-mortis. Não passou lá nenhum bom samaritano por nove horas naquela rua movimentadíssima, exceto a senhora pobre que o acolheu tardiamente.
No Brasil, há bem pouco o congolês Moïse Kabamgabe morreu espancado num quiosque no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Espancado cruelmente por quinze minutos, entre refri, sanduba e frutos do mal no quiosque que não fechou sobre o cadáver e “carne mais barata”, como se referia a divina Elza Soares.
As chuvas e efeito da El Niña põem mais uma aflição das muitas aos brasileiros pobres, ribeirinhos, moradores de encostas, periferias, marginalizados nessas reformas que desabaram sobre os mais pobres, a trabalhista e previdenciária, que empobreceu a todos. Alguns vão aos postos de saúde à cata de algo de comer, desmaiados de fome e outros vão atrás de ossos em caminhões de carcaças e ainda alguns vão “negociar direto com o patrão”, como o congolês cujo trunfo era serviço já feito, a cara e a coragem. O povão não tem imunidade como políticos e categorias fortes, não têm leis que os protegem à mercê do patrão. A reforma trabalhista tirou proteções mínimas. Desses muitos morrerão nas ruas movimentadas das capitais de frio ou fome e não serão notícias, mas estatísticas.
Nesses desabamentos falam-se de “acolhimento das famílias”. Os governantes pedem dinheiro, dão entrevistas, mas no ano que vem novas enchentes e promessas de casas populares!
Há muitas moradias no centro de São Paulo, vazias, em litígio de herdeiros e com débitos de impostos vultosos às prefeituras e desabrigados na periferia. Guilherme Boulos chega a dizer que “tem mais casa sem gente que gente sem casa”. O urbanista Alexandre Benoit sugeriu o uso dos 300.000 imóveis vazios na capital paulista para erradicar o déficit habitacional.
Há gente de muito dinheiro que constrói em áreas de proteção ambiental e outros, por extrema necessidade, mudam para as periferias com seus gatos e encostas perigosas. São os acuados pelas condições econômicas, sempre desfavoráveis aos pobres.
Nós da cidade logo queremos “segurança”, um condomínio. Vemos muitas casas com piscinas e churrasqueiras esperando visitas que talvez nem venham, com custo de manutenção. Casas vazias de um filho que se foi, de alguém que faleceu, de lembranças que não se repetirão, de momentos passados e que não voltam nem por um milhão. Se foram…
O que é uma casa? É uma propriedade que se demora a possuir e paga-se em parcelas e depois paga-se a reforma cujos produtos e mão de obra caros, impostos e taxas. Casa não é um lar por si só. Muitos fazem enormes sacrifícios para tê-las e quando as tem não veem a hora de viajar de férias em algum lugar que não seja a sua casa, quiçá de um acolhimento.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

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