Platão e Rui Barbosa estão de acordo!

Armando Alexandre dos Santos

 

Vimos, no último artigo, como Platão concebia uma sociedade ideal, na sua famosíssima obra intitulada “República”.  Segundo sua concepção a sociedade humana devia se constituir à maneira de um organismo vivo, com funções distintas e hierarquizadas. Assim como o homem tem uma parte racional, que deve dirigir sua existência com pleno domínio sobre as paixões animais, também a sociedade devia ter uma elite, constituída pelos magistrados ou governantes, servindo como condutores do conjunto social, sempre guiados pela sabedoria e não por suas paixões mais baixas. A segunda classe diferenciada proposta por Platão era a dos guerreiros, encarregados de prover a defesa do organismo social contra todos os seus inimigos, tanto externos como internos. Vinha depois a terceira categoria platônica, a dos que cuidam da parte econômica da sociedade, ou seja, artesãos, agricultores e comerciantes. Somente os membros dessa terceira classe podiam constituir família e podiam possuir e transmitir bens, sendo obrigatoriamente celibatários os elementos das duas primeiras classes.

Vimos também o paralelismo entre a concepção da sociedade ideal de Platão e a organização social do Medievo, com três classes bem distintas, Clero, Nobreza e Povo, cada qual com uma função específica, todas as três se ordenando hierarquicamente ao bom funcionamento de todo o corpo social, como na concepção platônica.

Apontamos, por fim, uma fundamental diferença entre a república sonhada por Platão e a sociedade medieval. Nesta última, os clérigos não se casavam e não constituíam família, mas os nobres guerreiros sim, formando estirpes, enquanto na república platônica, as funções de mando e as de caráter militar não seriam hereditárias, mas apenas exercidas individualmente por pessoas solteiras.

Note-se que a sociedade ideal de Platão era hierarquizada e rigidamente estratificada, de acordo com as funções exercidas por cada um; mas, diferentemente da sociedade medieval, era profundamente igualitária, pois todas as funções não seriam hereditárias, devendo ser atribuídas conforme as aptidões reveladas por cada indivíduo. E a educação seria igual para absolutamente todos, homens e mulheres.

Ainda segundo Platão, a Justiça, no âmbito pessoal de cada indivíduo, consistia em fazer as partes inferiores da alma (a irascível e a concupiscente) cumprirem sua função, deixando-se conduzir pela razão; e, no âmbito social, a Justiça consistia em cada qual estar em seu lugar, desenvolvendo as funções e as atribuições que lhe eram próprias. A ideia de igualdade, para Platão, não era a da igualdade aritmética que muito mais tarde seria apregoada como a única justa pela Revolução Francesa, mas era a igualdade geométrica, ou proporcionada a cada qual.

A igualdade, como a concebia Platão, não era absoluta, mas era relativa e proporcionada; melhor se a designaria como equidade. Que é equidade? É a aplicação de um critério igual a pessoas desiguais, não de modo aritmético, mas proporcional. Se enchermos de água um dedal, um copo e um barril, a quantidade de água que cada um desses recipientes comporta será diferente, de acordo com as dimensões e as necessidades de suas naturezas, mas os três estarão igualmente cheios.Mas se quisermos aplicar uma igualdade aritmética ao caso, colocando no dedal e no barril estritamente a mesma quantidade de água, que encheu o dedal, o resultado produzido é que os três recipientes ficarão injusta e desigualmente abastecidos.

Com efeito, a verdadeira equidade consiste em tratar igualmente aos iguais e desigualmente – e proporcionadamente – aos desiguais. Esse princípio básico do bom senso, cujas raízes vêm do velho Platão, foram lembrados muito oportunamente numa peça oratória famosíssima, que marcou época em seu tempo e ainda hoje com frequência é lembrada em citações jurídicas ou em discursos políticos:

“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria.”

Essas belas e profundas palavras são de Rui Barbosa (Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949, p. 33-34).

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

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