A sociedade tripartida de Platão

Armando Alexandre dos Santos

 

No pensamento de Platão, tem enorme importância sua teoria acerca das ideias, formas puras que constituem a verdadeira realidade e têm como ápice a ideia suprema, a do Bem. As coisas que existem no mundo visível e são apreensíveis pelos nossos sentidos não passam, para Platão, de sombras da verdadeira realidade, a qual é constituída pelas ideias, formas primordiais, arquétipos eternos. Na ótica platônica, quem se atém à realidade visível e não adentra os domínios da sabedoria filosófica é como o cavernícola que jamais saiu à luz do dia e somente tem noção incompleta e deformada – à maneira das sombras da famosa alegoria da caverna – das realidades transcendentes e imateriais. De passagem comente-se que a Angelologia cristã – o estudo teológico da natureza angélica – tem muita consonância com alguns aspectos do platonismo: também os anjos são puras formas e são arquétipos, não propriamente eternos, porque tiveram princípio (não foram criados ab aeterno), mas existindo fora do tempo, na eternidade.

Platão concebe o homem com uma alma tríplice, ou com três dimensões, a racional, a irascível e a concupiscente. A primeira, sediada na cabeça, rege-se pela sabedoria ou prudência, e cabe a ela indicar o que convém fazer. A segunda, sediada no coração, rege os impulsos e afetos e é regida, por sua vez, pela fortaleza e pela coragem, que, quando bem orientadas, servem aos ditames provenientes da alma racional. Já a terceira alma, sediada no baixo ventre, diz respeito às à satisfação das necessidades mais básicas do corpo humano e seus desejos, ou seja, sua concupiscência. As duas dimensões não racionais devem se pôr ao serviço da parte racional da alma. A justiça, para um homem, consiste em respeitar essa hierarquia fundamental, não permitindo que as dimensões inferiores assumam a dianteira sobre a racional.

A sociedade ideal, imaginada por Platão, segue precisamente o mesmo modelo da alma tripartida do homem. A sociedade concebida por ele é um todo orgânico, à maneira de um organismo vivo. Como o homem, tem uma parte racional, constituída por sua elite, ou seja, pelos magistrados ou governantes, condutores do conjunto social porque guiados pela sabedoria e não pelas paixões mais baixas. A segunda classe diferenciada é a dos guerreiros, que têm por dever a defesa da sociedade contra seus inimigos externos e internos, e cultivam em especial a fortaleza; já a terceira categoria é a dos artesãos, agricultores e comerciantes -ou seja, aqueles que cuidam da parte econômica da sociedade. Também na sociedade, a ideia rectrix da Justiça está presente, na correta manutenção da hierarquia de funções, cada classe cumprindo seu papel específico, para o bem do conjunto. Se cada órgão do corpo humano cumprir bem seu papel, todo o organismo gozará de boa saúde; analogamente, se cada membro do corpo social atender bem ao que lhe compete, tudo andará bem na pólis. A visão platônica da sociedade humana é, pois, eminentemente orgânica.

Na ótica de Platão, o comércio e as riquezas não convêm aos sábios e aos magistrados, assim como tampouco o constituírem família. Se pudessem enriquecer ou passar bens para seus herdeiros, acabariam se deixando dominar por sentimentos e anseios próprios dos inferiores e descuidariam de sua alta missão.

Nesse sentido, é muito patente a analogia da concepção platônica da sociedade com a concepção da sociedade orgânica medieval, com seus três Estados (ou Braços, ou Ordens) da nação. Os membros do clero também não casavam e deviam, pelo menos em princípio, praticar a pobreza ou aspirar a ela; os nobres medievais não pagavam imposto em dinheiro, mas pagavam o “impôtdusang”, tendo o dever de defender a sociedade, e eram proibidos de exercer atividades lucrativas; e o terceiro estado trabalhava, comerciava, lucrava e garantia o sustento da sociedade no seu conjunto. O clero tinha todas as honras e preeminências e lhe cabia o governo espiritual; os nobres eram similarmente honrados e lhes competia a administração temporal, mas não podiam – ou pelo menos não deviam – entesourar.

A sociedade medieval era compreendida como sendo um organismo vivo, com um único corpo composto de órgãos com funções diferenciadas, todos ordenadamente dispostos para o bem do conjunto. Três eram seus braços, ou estados: Clero, Nobreza e Povo. Costuma-se citar frequentemente, a respeito, um texto muito conhecido do bispo Adalbéron de Laon (977-1030), que foi conselheiro do rei Hugo Capeto: “A casa de Deus, que acreditam una, está dividida em três: uns oram, outros combatem, outros, enfim, trabalham. Estas três partes que coexistem não suportam ser separadas; os serviços prestados por uma são a condição das obras das outras duas; cada uma por sua vez encarrega-se de aliviar o conjunto.  Por conseguinte, este triplo conjunto não deixa de ser um; e é assim que a lei pode triunfar, e o mundo gozar da paz.”

A sociedade medieval, ordenada de modo hierárquico, com clero, nobreza e povo, era algo natural e a ninguém ocorria contestar, nem mesmo pôr em dúvida, a razoabilidade desse escalonamento, num conjunto orgânico em que cada órgão desempenhava seu papel, em ordem ao bom funcionamento de todo o corpo social – precisamente como na concepção idealizada por Platão.

Há, entretanto, uma diferença fundamental entre ambas as concepções. No Medievo, os clérigos não se casavam e não constituíam família, mas os nobres sim, formando estirpes. Na República platônica, porém, não haveria nobreza hereditária; nela, a participação na vida pública ficaria reservada às duas classes superiores, mas o domínio da esfera privada ficava consignado à classe inferior; somente esta se beneficiaria da propriedade e constituiria família, ao contrário das classes mais altas que exerceriam suas funções por mérito, mas não poderiam enriquecer nem perpetuar-se por via familiar.

___

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima