Gritos na mata

Camilo Irineu Quartarollo

 

Eu poderia deixar este texto para o Dia do índio, mas há gritos na mata. Matam impiedosamente curumins e cunhatãs, delapidam o ambiente mais rico do planeta, que Ailton Krenak diz “quero ver como os brancos vão se virar sem a natureza!”. Nossos rios têm nomes indígenas, nossas plantas batizadas por eles. Deles o conhecimento inigualável e prático das numerosíssimas miniaturas chãs e arbóreas, cujo pisar é de reverência, cujo ar é dos aromas mais diversos enquanto os ventos acariciam a aura de urucum e jenipapo. “Nós sabe cuidar da floresta”, diz Davi Yanomami”.

Entretanto, são perseguidos e mortos pelos cristãos brancos. Em Goiás e Tocantis, estão os Avá–canoeiro com cinco pessoas restantes. O povo Piripkura de Mato Grosso tem ainda três membros, dos quais Rita teme pelos parentes Baita e Tamanduá, indefesos frente aos invasores. Da nação Juma, dos quinze mil no século XX sobrara somente um, Aruká, no qual entucharam cloroquina e ivermectina, dando-se causa de óbito por Covid em fevereiro de 2021. Por fim, há no oeste de Rondônia um indígena solitário por vinte e dois anos, de etnia desconhecida, referido como “índio do buraco”.

De quando chegaram aqui os corsários, aventureiros e Companhias mercantis para rapinas, havia onze milhões de habitantes originários e duas mil nações indígenas. Atualmente, os silvícolas representam menos de meio por cento da população brasileira e das duas mil nações indígenas apenas trezentas e cinco ainda sobrevivem.

Depois de mais de trezentos anos da carta do escrivão real Pero Vaz de Caminha e de muitas guerras e lutas na Costa e matas, o mito do Descobrimento se consolida no Império, sob D. Pedro II. O imperador, inclusive, manda Victor Meirelles pintar A Primeira missa no Brasil, no qual os indígenas aparecem embevecidos e mansos. O Bragança quer, por certo, legitimar o trono pela continuidade histórica oficial.

Mas no mundo real, indígenas de várias etnias ou nações entrecruzam nas matas e rios. Pisam e ultrapassam os mapas minuciosos, urdidos nos gabinetes e conchavos com o papa e reis com seus tratados. Os silvícolas o fazem para chegar aos lugares mais propícios à subsistência ou de culto, sempre preservando, sem se apossar.

Para os povos originários a terra é viva, e mãe, uso de todos os viventes. Não podemos comprar a nossa mãe, ela que nos gera, como comprar uma mãe? Um indígena não acredita que a terra possa ser negociada. A indígena Marta Guarani afirma: “nós índios somos como plantas e não podemos viver sem a nossa terra”.

Ailton Krenak se irrita com a pergunta de como o indígena vê a posse de terra. Para esse intelectual indígena brasileiro, a terra é de uso comunitário e bem espiritual, na mesma linha do chefe indígena americano, Seattle, categórico na carta do século XIX que enviou ao presidente dos EUA.

A terra clama aos céus amazônicos o sangue dos seus filhos.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor de nove livros, dentre os quais “A ressurreição de Abayomi”

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