Contágio

Cecílio Elias Netto

 

Os sentimentos humanos são viróticos.Contagiam. Propagam-se. Podem tornar-se epidêmicos, endêmicos. E pandêmicos, como acontece nas guerras mundiais, movidas a ódios. Há um mistério que autores, pensadores – como Jung, Campbell, entre outros – tentam entender e não entendem, ainda que deem preciosas explicações.

Estamos, perigosamente, sofrendo o contágio dos ódios, o mais terrível dos sentimentos. O ódio é irracional e, portanto, impossível de ser enfrentado pela racionalidade humana. Sentimentos têm, como contraponto, outros sentimentos, opostos. A Oração da Paz – atribuída a São Francisco, mas elaborada por autor anônimo – é uma das belezas do coração humano e nos traz respostas àquilo que a razão não consegue solucionar: “Onde houver ódio, que eu leve amor (…) onde houver desespero, que eu leve a esperança (…) onde houver trevas que eu leve a luz.” Está nela, em meu entender, a síntese do verdadeiro sonho humano de fraternidade, de solidariedade, de compaixão.

Portanto, se os ódios contagiam, o mesmo acontece com o amor, com a beleza, com a generosidade. Que, também, se espalham, infiltrando-se por brechas das barreiras de aço da injustiça, das crueldades. A diferença está no fato de os ódios serem espetaculosos, ostensivos, visíveis e perceptíveis. E as belezas, quase sempre, silenciosas, sutis, suaves, feitas de ternura. A pouco e pouco – se houver convicção nelas – também contagiam, propagam-se. Portanto, é possível, sim, pensar-se numa epidemia de amor.

As imposições – positivas ou negativas – apenas nos alcançam quando, de uma ou de outra forma, permitimos aconteçam. As estruturas familiares são a grande base dessa semeadura perversa de ódios, quando deveriam ser o nascedouro da solidariedade. Se permitirmos que sistemas político-econômicos sejam mais poderosos do que o amor nas e das famílias, tornamo-nos, então, ovos da serpente. O sentimento de fraternidade não surge de cima para baixo, pois isso seria uma outra escravidão. Ele nasce, brota e se expande de baixo para cima. O cume da pirâmide depende da estrutura que a sustenta.

Não há mais como negar a força, o poder e a prevalência dos ódios praticamente no mundo todo. Quando a vida e a existência passam a ser pautadas pelo materialismo obstinado, pela irracionalidade abafando a voz dos corações, eis que estamos diante do caos. Que é onde o ódio predomina na lei dos mais fortes, na ausência de justiça, na terrível perda de esperanças.

A economia não pode prevalecer sobre a Política. E percebam que escrevi em maiúsculo, que é o verdadeiro sentido de Política. É esta – a partir de princípios de justiça e de solidariedade – que deve se impor, determinando os rumos da Economia.(Agora, com letra maiúscula também).

O contágio da beleza começa em casa. E não à toa esse incrível e providencial Papa Francisco, em sua admirável encíclica, chama o mundo, a Terra de “a nossa casa comum.” É uma carta que nasceu destinada a tornar-se histórica. Francisco, ainda outra vez, expressa-se em nome de todos os humanos e mantém a nobreza de sentimentos. Se os lares contagiarem-se de amor, essa beleza tornar-se-á epidêmica.

No entanto, haverá quem pergunte: e a família, em que se transformou? Ora, não importam as transformações motivadas pelo frenesi enlouquecido das estruturas embrutecidas. Creio, na realidade, que, quanto maiores as dificuldades e os obstáculos, mais profundo é o amor do ser humano para com a sua tribo. Paulo já nos assegurara: “O amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” Mãe e pai sabem disso.

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected])

 

 

 

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