Camilo Irineu Quartarollo
Era 04 de novembro de 2015, uma velha indígena da tribo Krenak sentara-se às margens do Rio Doce, Minas Gerais,a sentir as águas que desciam parase encontrarem com mar no Espírito Santo. Ascultava o rio e fazia suas orações ouvindo os ruídos familiares da natureza, cuja fluência sentia antes da hecatombe.
De repente, um ruído distante turbou a tarde e ela aguçou osolhos. Virou o olhar ao rio para o entender e o rio estava mudado, com humor estranho. O Rio Doce começou a refluir, queria regurgitar, começou a se mexer estranhamente, tremular suas ondas, choro de rio como a agonia de um natimorto na mãe que o sente. Laurita entrou em pânico e na noite outros começaram a pressentir dos estrondos longíquos a agonia do rio.
Na manhã seguinte, a lama chegou pesada e espessa sobre a docilidade daquele lugarejo, levando árvores, carregando animais mortos e o idílio. O rio agonizava com seus peixes nos rejeitos e escórias do estouro da barragem do fundão, de uma mineradora a quatrocentos quilômetros acima. A chamada “tragédia” de Mariana.
A primeira testemunha entrara em estado de choque, foi recolhida numa oca improvisada e não falou por semanas.
Os grandes jornais e jornalões tiveram de informar a enxurrada de 62 bilhões de litros de lama ea desocupação de um milhão e meio de ribeirinhos e indígenas atingidos sem dó em seus lares.
O Rio Doce estava praticamente morto.Virara um pântano. Laurita estava com olhar aterrador, de olhos fixos aonde era o rio, em enorme desolação. O indígena sabe que rio é vida, o homem branco compra garrafinha de água.
Então a filha de Laurita teve um sonho. Saiu ao seu quintal, de onde era a tribo e foi à beira do rio, onde sua mãe sentava-se. E o rio falou com ela:
– Entre, pode mergulhar. (É sabido que nosso hábito de se banhar é indígena.)
Ela adquiriu coragem e entrou na lama, mergulhou e desceu abaixo de uns lençóis de lama e lá, embaixo, o rio fluía harmonioso e limpo novamente. Escondido sob a superfície, o Rio Doce arranjou outro caminho para fluir ao mar e estava vivo de forma oculta.
Após a revelação solene do sonho pela filha, Laurita recobrou a razão e começou a saudar o rio e fazer a sua louvação na língua dos Krenak: “Oh, Watu, mirare re”.
A oração dirigida ao Rio Doce seria “Oh, Rio, das águas boas”.
Dizem os estudiosos que em muitos povos nativos os sonhos são contados e encenados, ocorrendo curas durante a teatralização.
A sociedade utilitarista tolera os poetas, menos os filósofos e de forma rude aos de pensamento livre. O cotidiano, a repetição de obrigações, torna coisas irrelevantes em reais e fazem uma garrafinha de água valer mais que todo o Rio Doce de uns índios lá das Minas Gerais, que passou na televisão.
No documentário do Aiton Krenak em conferência em Lisboa (youtube) o indígena e intelectual brasileiro expõe o evento que ora narro com minha verve.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de A ressurreição de Abayomi, dentre outros