O Betinho voltou!

Camilo Irineu Quartarollo

 

Em 1972, a maior intérprete do Brasil aparece rodeada de militares da ditadura com o “ê, Madalena. O meu peito percebeu. Que o mar é uma gota.Comparada ao pranto meu”! Adesão!?

Uma vergonha à resistência cultural da época. Henfil, o irmão do Betinho, cunhou seu repúdio veemente em cartum: Elis Regina foi lançada ao Cemitério dos Mortos–Vivos do Caboco Mamadô.

Na verdade, por trás das câmaras, Elis teve de abjurar como um Galileu Galilei e, hoje talvez, sob as mãos de um torturador diríamos que “a terra é plana” – se eu disser não me creiam, nem o peixe do meu aquário acredita!Nãoporque seja inteligente, mas por viver no mundo real.

Elis dava entrevistas e numa delas afirmara que o nosso país “é governado por gorilas, com respeito aos gorilas, claro”. Os gorilas não se ofenderam, mas a cantora foi chamada a interrogatório pela polícia políticae teve a proposta indecente de cantar numa parada militar para “desagravo”. Com filho pequeno e recém divorciada, cedeu cantando para subsistir, como uma cigarra que vai abandonar a casca.

Aos poucos Elis volta à essência de sua carreira e canta muito por todos os cantos até chegar ao Bêbado e o equilibrista, nesse circo da vida em cordas e pernas bambas, sem ordem unida nesse mundo diverso onde o bêbado deambula.

Nos anos de chumbo, fugindo das perseguições, muita gente se exilou para não morrer eorganizar a luta no recuo. Atualmente, temos alguns no exílio e no Brasil a naturalização da barbárie com o tal de “mais um corpo encontrado”, mas é gente como nós, indígenas, seringueiros, líderes comunitários, favelados, despidos da cidadania.

Elis vai se reconciliando com os mal-entendidos. Sonhamoscom tanta gente viva ou morta que partiu, o Brasil espera sua redenção e “com a volta do irmão do Henfil”. Elis guarda um perdão na música a quem a renegou. Recomeçar. Reinventar. O Betinho voltou!

O Betinho era portador da Hemofilia. A metáfora perfeita de um país que sangra. Aqueles olhos esbugalhados e azuis num corpo magérrimo trazia uma esperança e repercutia: quem tem fome tem pressa.Tal qual uma grávida, o ativista perdia sangue, a esperança jamais. Diligente e inflexível na promoção humana e transformação da realidade de miséria que a ditadura nos joga.

Dentre as muitas ações sociais e políticas do Betinho está a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. A par disso, um assunto conexo à fome, ele articulou a Campanha Nacional pela Reforma Agrária, organizou em 1990 o evento Terra e Democracia, com duzentas mil pessoas ao Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Enquanto sua grande alma operava sem esmorecer, seu mal congênito da Hemofilia e da AIDS contraída em transfusãoo debilitavam discretamente. Ele via os problemas do país, não os próprios. Sem ambição ou glórias vãs, Betinho venceu na ação pela vida aos seus compatriotas, mesmo combalido, vive.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor independente, autor do livro A ressurreição de Abayomi, dentre outros

 

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