Vida cotidiana: um gênero “sui generis”

Armando Alexandre dos Santos

 

A expressão “vida cotidiana” para designar um gênero de abordagem historiográfica começou a ser usada em meados do século XX, inserindo-se entre as muitas consequências derivadas da renovação historiográfica desencadeada pela chamada ÉcoledesAnnales, lançada em 1929 na Universidade de Estrasburgo, na França, pelos professores Marc Bloch (1886-1944) e LucienFebvre (1878-1956)

Entre muitas outras inovações dessa escola, a pluridisciplinaridade nos estudos históricos foi, sem dúvida, uma das mais salientes. Do diálogo da velha e tradicional História (que no passado praticamente só dialogava com a Geografia) com outras ciências humanas e sociais e com informações hauridas em outros campos do conhecimento humano, brotaram novas formas de ver e fazer história, novos questionamentos, novos objetos de estudo. Da compreensão de que não apenas documentos escritos e/ou oficiais são fontes dignas de serem tomadas em consideração pelos historiadores, mas que outros registros da memória coletiva também podiam e deviam ser considerados, brotou toda uma nova historiografia, imensamente mais rica e abrangente do que a do passado.

Para a disseminação e a entrada em voga da expressão “vida quotidiana” contribuiu enormemente o sucesso estrondoso obtido, desde o início, pela Coleção Vida Cotidiana, lançada a partir da metade do século XX pela prestigiosa editora parisiense Hachette, uma das maiores e mais antigas de toda a Europa. Desde os primeiros lançamentos dessa coleção, tal foi o sucesso que não apenas seus livros passaram a ser traduzidos para os principais idiomas, mas também muitas outras editoras, em vários países, lançaram seriados claramente inspirados no modelo inicial da Hachette, para não dizer que copiados servilmente dele.

Discutiu-se muito no plano teórico o sentido e o alcance do conceito de vida quotidiana, aproximando-o, e em certo sentido dissociando-o de outro conceito que também ganhava terreno na mesma quadra histórica e que também inspirou séries e coleções de livros em vários países: o conceito de vida privada.

Em termos bastante simplificados e sem querer aprofundar demais o assunto, podemos dizer que o conceito de vida privada se contrapõe ao de vida pública. Tudo aquilo que não diz respeito à esfera pública da atividade humana, tudo o que os indivíduos e famílias são e representam “ad extra“, para a coletividade, para a comunidade política ou social em que se inserem, cai no âmbito da vida pública; e tudo o que se passa no âmbito doméstico e/ou familiar “ad intra“, cai no âmbito da vida privada.

Já no conceito de vida quotidiana o fator determinante é o temporal. Aquilo que se faz no dia-a-dia e aquilo que tende a ser repetido por força da rotina, dos hábitos, dos costumes, seja na esfera privada, seja na esfera pública, cai na alçada da vida quotidiana.

Ao público leitor em geral, o gênero literário “vida cotidiana” literalmente fascinou. Ao leitor mediano, não especializado, esse gênero literário permite mergulhos em realidades sociais circunscritas no tempo histórico e no espaço físico, estudando-as e analisando-as em profundidade, nos seus mais variados aspectos. Também os leitores mais exigentes, mais especializados ou menos em determinado período histórico ou em determinada sociedade antiga, os livros da série atraem pelo seu poder de síntese e pela visão de conjunto que proporcionam.

Não é um gênero fácil. O autor de uma “vida cotidiana” necessita conhecer profundamente não só a história de uma época, mas precisa de conhecimentos pluri-disciplinares muito extensos, sob pena de falhar redondamente no quadro que traçar.

Recordo que o primeiro livro dessa fascinante série que li foi “A vida cotidiana na Rússia, no tempo do último Czar”, de Henri Troyat, franco-russo autor de numerosos livros históricos ou de ficção que mais tarde eu devoraria com avidez. Li, depois, “A vida cotidiana em Lisboa, ao tempo do terramoto”, de uma autora francesa, cujo nome esqueci; “A vida cotidiana em Viena, no tempo de Schubert”, de Marcel Brion; “A vida cotidiana dos médicos franceses, no tempo do Rei-Sol”, “A vida cotidiana nos tempos de Homero”, de ÉmileMireaux, membro do famoso Institut de France,e muitos outros.

A Editora Hachette deu prosseguimento à série Vida Cotidiana e já lançou centenas de títulos. Infelizmente, somente uma pequena parte foi traduzida para o português e publicada no Brasil. Para os leitores que não dominam a bela língua francesa, vale a pena pesquisarem e encontrarão ótimas leituras.

___

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima