Presépio

Alê Bragion

 

Exausta, a mãe descansa sobre a palha seca o filho recém-nascido. Aquele que parece ser o pai põe-se de guarda, rondando com os olhos o berço feito de pedra e feno. A criança treme de frio, mas não chora. A mulher ajeita mais algumas folhas sobre o menino. O homem traz mais um carneiro para perto da manjedoura. Os animais bafejam. Mudos, entreolham-se cabras, asnos e camelos. Que fazem os humanos na casa dos animais? A criança parece mais aquecida. Os bichos observam a cena.

Seria mesmo um deus o menino ali nascido? Um boi cerra os olhos. Uma cabra masca pensativa. Acalentada pela respiração dos animais, a mulher adormece. Tentando desvendar os mistérios da vida, um asno de orelhas tortas põe-se a pensar: lá estão novamente os animais na rota tortuosa e incompreensível do destino dos homens. O que intenta o universo ao inserir sempre os bichos no caminho humano das religiões? Sim, porque não há religiões sem animais. A criança se mexe. O homem apenas observa. A mulher ainda dorme.

Não foram primeiro criados os bichos para só depois terem vida os homens? Não foram colocados e salvos numa arca um casal de animais de cada espécie, enquanto morria o mundo afogado pelo dilúvio? E, mesmo em outras terras, dominadas por deuses diferentes, não tomam parte também os animais de um sem-fim de festas e procissões religiosas? Oras! Afinal, o que tem a ver os animais com os desígnios divinos que se precipitam sobre os humanos?

A mulher acorda. Um boi aproxima-se do berço de pedra e recosta-se a ele. Uma estrela começa a aproximar-se do céu do estábulo. Pastores surgem num monte à distância. Um menino deus nascido entre os bichos? Justamente entre os bichos? Tão humilhados, tão maltratados, chutados pelos caminhos, apedrejados pelas ruas, esquecidos ao relento, condenados à morte mais cruel (sem água e sem comida), ridicularizados pelos legisladores, torturados e mortos em rituais macabros, dominados pelos mais insensíveis algozes… E, mesmo assim, um deus vem nascer entre eles?

Na curva ainda longe, a caminho do estábulo, apontam finalmente os pastores. Estão atrasados. Os homens estão sempre atrasados – reflete o asno, perdendo-se no sono de seu filosofar (sem imaginar que, dias depois, mais três outros homens ainda mais atrasados viriam).

A estrela para em ponto sobre os animais. E a noite de natal – a primeira e eterna noite de natal, tão bela e tão pura – cai somente sobre os anjos do curral.

(Atendendo a inúmeros pedidos de um ou dois amigos, reproduzo esta crônica natalina na esperança de um mundo melhor, menos violento e mais justo para todos os seres. Dica de natal: no Youtube, o ator e amigo Romualdo Sarcedo interpreta essa de maneira muito generosa. Vale conferir: youtube.com/watch?v=cp2-m6Kj9Ek. Bom natal!) 

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

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