Café com Memória: Um fantasma à espera da lua

Carlinhos Gonçalves

 

Escrevi em tempos passados que gosto dos pássaros urbanos, pois eles me trazem gratas lembranças de quando a Noiva da Colina engatinhava e crescia lentamente em direção ao céu. Andávamos de pé descalço, sem camisa e calção feitos de retalhos ou saco de açúcar do Engenho Central, construído pelo Barão de Rezende, vendido à SSB (Société de Sucreries Brésiliennes), que na época o transformou no mais importante engenho do país.

Tempos que eram para nós, crianças, sem muitas preocupações e percorríamos o nosso bairro e imediações em busca de aventuras. A cidade era totalmente habitada por pássaros urbanos como Pardal, Tico-tico, Tesourinha, Papa-capim, Andorinha, Bem-te-vi e Quero-quero, o pássaro que, segundo o poeta, gosta mais de amar do que trabalhar. O interessante é que ainda hoje os pássaros insistem em voar e cantar em meu imaginário melodias doces de uma época tão distante que me faz recordar, às vezes, as serenatas dos boêmios nas casas das namoradas pelas ruas poucos iluminadas de nossa cidade.

O poeta Manoel de Barros dizia que os pássaros cantam não porque tem algo a dizer, mas porque eles trazem uma melodia na garganta. Eu também conto minhas histórias porque tenho algo a dizer e elas estão presas em mim e precisam ser contadas e, por isso, vou contar a história de um pássaro estranho que, incrivelmente, nunca cantou em minhas lembranças como as outras aves.

Em lugares distantes, lá pelas bandas do sertão de Mato Grosso, ela é temida e até cassada por autoridades porque o seu canto causa temor nas pessoas por ser uma ave misteriosa, embora, também com características urbanas e lembro-me de tê-la visto poucas vezes em nossa cidade pelos terrenos e chácaras. Durante o dia, ele tem o habito de se misturar às folhagens das árvores, e repousa em tocos secos onde faz ninho e fica como um soldado em posição de sentido, imóvel e invisível.  Costuma cantar ao escurecere por isso é chamada de “Ave Fantasma”, seu canto é assustador e triste, nos sítios, o caipira fala que ela inicia seu canto ao cair da noite quando a lua aparece.

Vi, em plena luz do dia, um Urutau no prédio vizinho ao edifício garagem ao lado da Igreja Matriz da Catedral, imóvel e invisível aos olhos desatentos ao aqui e ao agora. Os caipiras dizem que essa ave fica à espera da lua para aparecer e entoar seu canto triste e de mau augúrio. Talvez seja verdade que ela nos traz mau presságio e quer nos alertar do que está por vir no futuro.

De alguma forma, acredito ser uma lenda, embora a lenda seja um relato simbólico ou alegórico de certas verdades, leis ou fatos da natureza, porém ninguém pode negar que ela nos provoca e nos faz refletir. Como dos personagens de Hesse, eu acredito que só podemos aspirar a nós mesmos, a nosso próprio destino, pois o resto é apenas canto de um pássaro noturno.

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João Carlos T. Gonçalves, Carlinhos, professor, conferencista, especialista em Marketing Institucional

 

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