O direito-dever de ser vacinado

Almir Pazzianotto Pinto

 

Trava-se no País guerra de palavras em torno da vacinação contra a Covid-19. A pandemia trouxe mais de 600 mil mortes e a infecção a milhões de pessoas, das quais boa parte se recuperou, muitas, porém, com alguma sequela.

A ciência ainda não conseguiu produzir remédios injetáveis ou tomados por via oral, capazes de combater e curar a moléstia causada pelo coronavírus. Tão logo se deram conta da velocidade com que se alastrava a pandemia, grandes laboratórios estrangeiros e nacionais se empenharam na criação de vacina destinada à imunização.

Alguns países agiram com presteza, outros não. O terceiro-mundista Brasil acompanhou, então, surrealista enfrentamento do governo federal, indiferente à peste do século, com governos estaduais e municipais, empenhados em observar as orientações da Organização Mundial da Saúde, e de autorizados infectologistas. A facilidade do contágio obrigou a refluírem as atividades sociais, culturais, esportivas e econômicas e as pessoas sensatas entenderam a necessidade de usar máscaras e de se isolar.

Não repetirei aquilo que todos sabem: a proteção mais eficiente só se fez possível quando houve vacina em quantidade suficiente para vacinação em massa. Dezenas de milhões aguardaram ordeiramente a convocação de autoridades sanitárias para se vacinar. Muitos já tomaram a terceira dose, como é o meu caso. Outros, todavia, resistem à vacinação, sob o pretexto do exercício de direito individual intocável pelo Estado, a quem compete respeitar decisão fruto do livre arbítrio.

Será assim? Estarão certos? Afirmo que não. A falsa liberdade de não se vacinar me leva a recorrer à Constituição democrática de 1988, denominada por Ulysses Guimarães “Constituição Coragem”, onde encontramos farto manancial de obrigações, às quais não podemos nos opor em nome da conveniência pessoal.

É o caso do Art. 14, § 1º, que determina serem obrigatórios o alistamento eleitoral e o voto, aos maiores de dezoito anos. Em muitos países não é assim. Para a nossa Constituição, entretanto, é indiferente a vontade do cidadão. É obrigado a se alistar e a votar, sob pena de ser multado e privado de outros direitos, como prestar concurso público ou ingressar na Polícia Militar. Em determinadas circunstâncias, deverá exibir o título de eleitor e provar ter votado nas últimas eleições.

O Art. 143, da mesma Lei Fundamental, determina a obrigatoriedade da prestação do serviço militar. Estão isentos mulheres e eclesiásticos, em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes determinar. Aos dezoito anos o cidadão se alista e aguarda por convocação. Fiz o Tiro de Guerra em Capivari e recebi honroso certificado de reservista, assegurando haver cumprido o dever com as Forças Armadas.

Nada menos agradável do que pagar impostos. Estamos obrigados, porém a recolher impostos, taxas, contribuições de melhoria. A recusa ao pagamento, em nome da liberdade pessoal, submete o devedor a ação judicial de cobrança, inscrição na dívida ativa, salvo se – o que é raro – estiver amparado por algum tipo de isenção.

Volto à Constituição, cujo Art. 196 afirma ser “a saúde direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Meio conhecido e difundido de redução do risco de doença é a aplicação de vacinas específicas. Ao nascer a criança recebe a vacina BCG (dose única) e contra Hepatite B (1ª dose). Com um mês recebe a segunda dose desta vacina. Aos dois meses a 1ª dose da tetravalente, contra poliomielite, rotavírus humano, e antipneumocócica.

Continua sendo vacinada aos três, quatro, cinco, seis, nove, doze, quinze meses, quatro e dez anos. Graças às campanhas de vacinação, levadas à efeito pelo Sistema Único de Saúde, com o apoio dos Municípios, a mortalidade infantil se reduziu de forma significativa e aumentou a expectativa de vida. Hoje a vacina contra a influenza e anual, com excelentes resultados na proteção da saúde.

Quem tem cão irá vaciná-lo contra a raiva e diversas outras doenças. Se for pecuarista vacinará o gado contra febre aftosa. O proprietário de granja de suínos. frangos, galinhas, perus, está obrigado a vaciná-los de acordo com calendário da Secretaria de Agricultura.

O adensamento exagerado da população, como em São Paulo, impõe que se observem as prescrições da área da saúde. A poliomielite e a varíola estão controladas. Dizem, porém, os médicos sanitaristas, que não podemos abaixar a guarda, sob pena de ressurgirem por falta de vacina.

A discussão do tema parece-me, portanto, estéril e de cunho político. Alimentada por pessoas que se esforçam para ignorar a realidade. São espíritos medievalistas, fanáticos negacionistas, incapazes de, por razões políticas, admitir que foram derrotados. Mais uma vez, na história da humanidade, venceu a ciência. Graças a Deus!

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Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST); autor dos livros A Falsa República e 30 Anos de Crise 1988-2018

 

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