A Semana de 22 em 2022

José Renato Nalini

 

Existe similitude entre a década de vinte do século vinte e esta nossa, do século vinte e um. As elites pensantes de hoje podem nutrir idêntica sensação experimentada pelas de ontem: um país em decomposição[1].

Os motivos podem ter sido outros. A República mudou o regime, mas não chegou ao povo: “sua ordem e progresso permaneceram restritas à classe dominante”[2]. A aristocracia cafeeira atribuía aos imigrantes uma sanha demolitória do país que os acolhera. Sinal expressivo disso, a greve geral de 1917 em São Paulo e a de 1918 no Rio de Janeiro.

Se a miséria dos sertões já fora mostrada por Euclides da Cunha e a pobreza de cortiços e subúrbios descrita por Aluísio Azevedo e Lima Barreto, em nossos dias a pandemia serviu para escancarar a situação de milhões que passam fome, não têm teto, nem emprego, nem perspectiva.

Milton Vargas observa o surgimento de tendências antagônicas – os entusiastas da Revolução soviética, animados por euforia libertária e os reflexos do fascismo, sobretudo entre os imigrantes italianos e seus descendentes. Ambas, nada obstante a profunda diferença de concepção da política e do mundo, confluíram na luta para extirpar o arcaísmo cultural. O que não cabia era ser liberal, “pois liberal conotava com “carcomido”, passadista, parnasiano ou defensor do academicismo”[3].

A diferença com nossos dias é que a sociedade brasileira está polarizada e não converge para a busca de um consenso. Mera opinião política, ou predileção por uma das alas, torna inimigos ferrenhos os que não pensam de igual forma.

Todavia, a urgência de uma transformação palpita nas consciências sensíveis, como gerou a intenção de realizar um festival em torno ao “futurismo”, depois chamado “modernismo”, que culminou na Semana de Arte Moderna. Para muitos – não para todos – as noites de 13 a 17 de fevereiro de 1922, tendo por palco o Teatro Municipal, inaugurado onze anos antes, mudou a cultura brasileira.

Esse “futurismo” chegara ao Brasil em 1912, quando Oswald de Andrade retorna da Europa, “empolgado pelas ideias demolidoras do Manifesto Futurista de Marinetti, publicado no Figaro, em 1909. Ali se preconizava uma literatura comprometida com o mundo tecnológico que surgia então”[4].Mais um ponto de contato: o que dizer da profunda e disruptiva mutação gerada pelas tecnologias da Quarta Revolução Industrial, em que estamos todos imersos?

A ideia do “festival”, em pleno mês de carnaval, surgiu num dos saraus em casa de Paulo Prado, o Mecenas da Semana, cuja esposa francesa, D. Marie Lebrun, sugeriu uma semana como a que se realizava em Deauville. Descreve Marcia Camargos que “o núcleo primeiro que daria as coordenadas do modernismo era constituído pelos poetas Mário e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa, os pintores Anita Malfatti e Di Cavalcanti e o escultor Victor Brecheret. Do Rio de Janeiro, receberam a adesão de Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Renato de Almeida, Villa-Lobos, Olegário Mariano e Ronald de Carvalho, entre outros”[5]. É preciso acrescentar que Graça Aranha, escritor e diplomata, foi quem arregimentou os cariocas e já era considerado um “modernista”, com seu livro “Canaã”.

Registra a história que Oswald era expansivo, impulsivo, até explosivo. Foi dele o discurso antológico em homenagem a Menotti Del Picchia, em janeiro de 1921, a pretexto da publicação de “As Máscaras”, pelo já festejado autor de “Juca Mulato”. Com a proximidade do centenário da Independência, Oswald propôs um gesto de emancipação artística: era hora de romper com o passado e proclamar a independência das artes nativas do Brasil.

A dupla dos “Andrades” se completava: “Se Oswald foi o iniciador, Mário de Andrade foi quem deu consistência ao movimento modernista. Sua série de artigos Mestres do passado, publicados em 1921, analisa com erudição e certa ponderação, embora com atrevimento, a poesia parnasiana consagrada de então, procurando mostrar que, apesar de seu valor, já estava sendo superada pelos modernos. Esses artigos fizeram mais pela renovação da nossa literatura que toda a jocosidade agressiva de Oswald”[6].

Estamos às vésperas da celebração do bicentenário da Independência. Teremos uma “Semana de 2022”, que represente algo que renove não só a cultura brasileira, mas sua perniciosa prática política?

Milton Vargas, no seu precioso “O sentido político da Semana de 22”, analisa a obra poética de Mário de Andrade e de Cassiano Ricardo, para concluir que “foram esses poetas que, revelando a essência da brasilidade, evitaram que o país se dissolvesse e fragmentasse nas confissões, divergências e antagonismos regionalistas que ameaçavam a integridade nacional naquela época”[7].

Quais os poetas brasileiros que hoje, prestes a adentrar a mais um ano enigmático – 2022 – se prestam a, com sua obra, evitar que o Brasil se dissolva e se fragmente, ainda mais do que já está?

Paulo Bomfim, cuja ausência desfalcou o patrimônio poético desta nossa Nação, era um ardoroso patriota. Mais do que isso, era um devoto da Pátria Paulista[8]. Era um arquiteto da harmonização. Enxergava as pessoas com a lupa generosa de quem só distinguia qualidades. Não proviria de sua pena o intuito destruidor que inflamou os responsáveis pela Semana de 22.

Com efeito, o propósito do movimento modernista foi essencialmente destruidor, na versão de seu cérebro, Mário de Andrade. “Aliás, essa opinião, emitida em 1942, é idêntica à que manifestara na A Gazeta, a 3 de fevereiro de 1922, às vésperas portanto da Semana: “Há exageros em nossa arte? É natural. Não se constrói um arranha-céu sobre um castelo moçárabe. Derruba-se primeiro a mole pesadíssima dos preconceitos, que já foram verdades, para elevar depois outras verdades” e não deixa de acrescentar, evidenciando o fenômeno cíclico da história, “que serão preconceitos num futuro quiçá muito próximo”. Faz referência à instabilidade dos preceitos e dogmas: “Se na própria ciência as “verdades” ruem à pressão dos Einsteins, que será na arte, feita de moda e sensibilidade!”.

 

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José Renato Nalini, reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove, presidente da Academia Paulista de Letras (APL); foi presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

 

[1] VARGAS, Milton, O sentido político da Semana de 22, Revista Brasileira, Junho de 2000, n. 23, p. 63, de onde extraí a expressão: A década dos anos 20 foi sentida, pelo menos elas elites de então, como de decomposição do país.

[2] VARGAS, Milton, idem, ibidem.

[3] VARGAS, Milton, op. cit., idem, p.64.

[4] VARGAS, Milton, op. cit., idem, p.66.

[5] CAMARGOS, Marcia, Semana de 22 – entre vaias e aplausos, Boitempo editorial: São Paulo, 2002, p. 72.

[6] VARGAS, Milton, op. cit., idem, ibidem.

[7] VARGAS, Milton, op. cit., idem, p.72.

[8]Pátria Paulista é o nome de um livro de Alberto Salles. Paulo Bomfim, o Príncipe dos Poetas Brasileiros, levou a sério a nova formatação proposta.

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