Dezembro, amigos e Vinícius

Alê Bragion

 

Quando na noite não há mais som, mais movimento, mais luzes ou desejos, leio até me arderem os olhos a Crônica aos Amigos, de Vinícius de Moraes, e me lembro de vocês, meus amigos fisicamente presentes – e também de outros tantos e outras tantas amigos e amigas que, infelizmente, a vida levou para longe e agora se misturam às multidões que cruzam as ruas do mundo ou se volatizam nas dimensões do espaço-tempo.

Lendo a crônica de Vinícius, me espanto: quanto mistério há no conhecer o mundo, as pessoas e os bichos. Quanto mistério há no encontrar pela vida àqueles a quem chamaremos de amigos fiéis, de anjos da guarda, de filhos não-naturais que recebemos de presente (ou por empréstimo) do universo. Afinal, em meio a tantos seres distintos, imersos num mundo de coloridos e formas, encontramos repentinamente companhia e amizades especiais, encontramos companheiros que viajam conosco ao longo de uma parte (grande ou pequena) de nossa misteriosa jornada terrena.

Ao viajarmos pela vida ao lado de nossos amigos, lembremos sempre, como nos disse o poeta – em seu Soneto do Amigo – que, na vida, um amigo só se vai ao ver outro chegar. E como são duras essas chegadas e partidas, como nos marcam na carne e no sangue o até logo que se torna “momentâneaeterna” despedida. Então, aprendemos, ainda com o poetinha, que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.” E nos resignamos, seguimos adiante – resilientes que somos – plenos de uma memória afetiva que nunca termina e cheios de um ávido amor pelos que se foram e pelos que ainda encontraremos no por vir.

Como disse Vinícius, há amigos que nem sabem que gostamos tanto deles. Pior: há amigos que nem sabem que são nossos amigos. Há amigos que conquistam esse status, mas nem imaginam que os colocamos em nosso “seleto” grupo de amigos – e, diante de um repentino convite para uma cerveja ou para um jantar, chegam mesmo a esboçar um olhar de supremo espanto ante nossa afetividade subitamente revelada. Há amigos que vemos poucas vezes ao longo da vida, mas que estão sempre presentes em nossos melhores pensamentos. Aliás, quantos bons amigos só estão presentes apenas em nosso pensamento, quantos assumem apenas a forma incorpórea do sonho, da ilusão – e seguem conosco por nossa vida afora: firmes, justos – porém etéreos.

Tal como conta Vinícius, a mim também alguns amigos me vêm à mente quando abro um livro. Outros me saltam à memória quando, mecânica e ternamente, balanço o gelo de um (raro) copo de uísque. Outros ainda falam com minhas lembranças se, diante de uma paisagem fantástica, me vejo estupefato e sem ação. Ainda outros estão comigo quando de minhas preces (também bem raras e desacreditadas) e orações (mesmo que mecânicas), quando mais deles preciso em minhas mais íntimas reflexões. Então, um gesto, um olhar, um cheiro, uma palavra deles me chega pelo ar – afinal, “o ar tem cheiro de lembrança,” (e isso quem nos conta é Guimarães Rosa, não Vinícius). Por fim, há amigos fiéis com os quais, em espírito, durmo e acordo todos os dias – e deles não espero nada mais do que o simples fato de continuarem a existir exatamente como e onde estão.

Antes de fechar a janela das minhas noites, lembro modesta e coletivamente dos meus amigos, desses de se pegar com as mãos – e desejo que se construa segura e perfeita a estrada sob seus pés, que se entrelacem exatas (no texto vital de cada um) a força do espírito, a sabedoria do existir e a beleza de estar vivo. Então, agradeço ao Universo pelo fato de existirem amigos em minha vida e sinto, em verdade, – e ainda parafraseando Vinícius, é claro – que eu sofreria se morressem todos os meus amores, mas que eu desabaria e também morreria se eu perdesse todos os meus amigos.

Por isso, neste ano tantas vezes tão triste e tantas vezes (ainda) tão duro que se finda ao piscar das luzes de natal na janela daquela casa mais simples e mais singela ao fim da rua, vibro com elas a certeza de que um brilho maior me une aos meus amigos para sempre. Ao sentir brilhar a estrela do natal – a mim tão falsa, dolorosa e urgente – no presépio mais angelical e mais repleto de animais o possível, tenho a garantia de que, estejam onde estiverem os meus amigos, estarão eles sempre reverberando dentro de mim a sua centelha humana (muito mais bonita e real que a divina) a me animar sempre.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

 

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