O nascimento de Jesus

Camilo Irineu Quartarollo

 

Não importa se nasceu em Belém de Judá ou na Galileia. Se era descendente do rei Davi ou do pobre José. Se tinha pai ou padrasto, se Maria era a mãe. Se era galileu, judeu, árabe, palestino ou brasileiro.

O sonho de fraternidade universal sempre esteve presente nos corações humanos, cantado em versos ou em prosa, mas insuficientes para mudar o mundo desde o primeiro vagido de Jesus há mais de dois mil anos. Por isso, todo o ano, voltamos à antessala da vida repassando o parto da humanidade. Para muitos, Jesus nem nasceu e ainda outros esperam pela volta de alguém que nem conhecem. O natal é data comemorativa, não histórica, da simbologia cristã e liturgia católica.

No primeiro séculocirculava pelo Império romano um texto pagão de enaltecimento, de propaganda dos feitos e predestinação do Imperador Augusto, cognominado salvador, ostentando status de divindade. E a este tipo literário deu-se o nome de evangelho.

Com astúcia e inspiração Marcos transforma o gênero em relato seu, o Evangelho de Jesus de Nazaré, fonte dos demais canônicos que se firmarão como luz que fulgura nas trevas. Não o de Augusto – esquecido, mas oevangelho de Jesus que vigora na voz do povo, das comunidades evangelizadas, mais populares que os textos do Império. Foi como a cobra de Aarão que engole a do faraó.

Marcos não usou de muitos adjetivos, mas fez uma narrativa consistente e substantiva. Mal comparando, um boletim de ocorrência extenso. Mais que os rebuscados textos da oratória romana os prodígios de Jesus no texto de Marcos parecem ocorrências espontâneas, mas de registro, sob um influxo obstinado. Esse Jesus, aliás nome comum entre eles, vive na Galileia, um fronteiriço da Síria e forasteiro em Jerusalém reina nas comunidades. O povo conhece o lago de Tiberíades, mas muitos nem associam o nome ao imperador Tibério, que Herodes homenageou. A lepra é a doença que corrói as pessoas, epidêmica. A miséria assola. As revoluções intestinas entremeiam aos assaltantes de estrada. Nem por isso Jesus pegou em armas. Armas letais não são para ganhar uma guerra, mas para substituir tiranos.

O nascimento de Jesus se dá no seio das comunidades e se consagra na voz delas. Este natal será de fome no Brasil, para muitos nos sinaleiros e de outros em trânsito de amargurasque esperam donativos e tristeza até para alguns abastados de sonhos puídos. Os herodes modernosespreitam como lobos o dinheiro minguado do pobre, querem um evangelho de Augusto, enaltecimento. Desviam bilhões para paraísos fiscais. Superfaturam obras e camuflam o butim por inúmeras contas bancárias até um paraíso infernal, offshore do diabo, em que “repatriam” o saldo comprando coisas deles mesmos ou fazendo doações às suas próprias empresas em forma de debêntures ou outro meio escuso. Roubam, enquanto o povo sofre sem condições mínimas de se alimentar, higienizar, estudar, divertir e trabalhar.

Jesus poderia ter nascido em qualquer lugar. O evangelho adverte, porém: ele é sinal de contradição.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro Entre as perícopes

 

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