Agnaldo Manoel dos Santos: o contributo do negro na plasticidade escultórica brasileira

Cabeça de Agnaldo Manoel dos

Santos, esculpida em madeira

 

 

 

 

Rafael Gonzaga

 

É muito provável que boa parte dos leitores não conheçam Agnaldo Manoel dos Santos e seus trabalhos. Suas esculturas apresentam soluções plásticas que o grande antropólogo José Mariano Carneiro da Cunha chamou de eruditas. Manoel dos Santos é um marginal no mundo das artes brasileiras, seu nome é pouco lembrado nas apostilas escolares ou nas grandes generalizações da história da arte do Brasil.

Não é um equívoco afirmar que, não apenas ele foi esquecido como também a grande massa de trabalhadores negros que, desde os primeiros anos de ocupação portuguesa, foram obreiros de toda sorte de trabalhos que envolviam habilidades artísticas nas cidades que iam surgindo nos caminhos de caranguejo dos colonizadores, na construção de capelas e igrejas que eram levantas no entorno ou como puxadinho da casa-grande, na douração e pintura do interior dessas construções, na criação da estatuária que as adornava e na carpintaria de móveis e outras peças de utilidade prática.

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, livro que completou 80 anos em 2016, permite-nos entrever esses “pretos” os quais, desde o princípio, alimentaram a boca das fornalhas dos engenhos e foram, também, a força auxiliar, se não a principal, das oficinas produtoras de toda a parafernália plástica que ocupou os territórios imaginários da colônia até o império. Os pretos não apenas carregavam as ferramentas de seus senhores, mas eram responsáveis por vários tipos de trabalhos. O viajante inglês Henry Koster, em 1810, ficara impressionado pelo fato de que muitos artesãos e demais senhores compravam africanos escravizados e seus descendentes e ensinavam ofícios com o objetivo de empregá-los como artífices para terceiros.

Se considerarmos o domínio da metalurgia, que já existia na África antes mesmo do contato com os europeus, além da presença de negros e pardos nas obras de talha e douração das igrejas barrocas brasileiras desde a segunda metade do século XVI, podemos afirmar que o nascimento das práticas artísticas no Brasil coincide com a chegada dos primeiros africanos. Em outras palavras, os negros, conjuntamente com as influências “exóticas” indígenas, contribuíram de modo definitivo na desvinculação das artes plásticas brasileiras de sua tutela metropolitana.

O ápice do papel artístico efetuado por negros e pardos na história do Brasil se encontra nas mãos tortuosas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Artista renascentista, filho de uma escravizada e inserido em contexto barroco, Aleijadinho imprime em suas esculturas aspectos que parecem ter sido herdados de tradições escultóricas africanas, especialmente se repararmos em seu naturalismo singular, com uma tendência estilizante exacerbada e intencional, que pode ser constatada no tamanho desproporcional da cabeça, nos olhos amendoados e narizes caricaturescos de seus personagens bíblicos.

Contudo, as pressões da casa-grande não deixavam de exercer suas influências, pois não era interessante, do ponto de vista do sistema econômico agroexportador com base em trabalho escravo, que negros escravizados perdessem o foco daquilo pelo qual eles foram “comprados” nas diversas Áfricas: trabalho árduo e braçal nas lavouras de engenho.

Abdias do Nascimento, em artigo seminal denominado Cultura africana na arte brasileira, publicado em 1978, no Jornal de Estudos Negros, mostra de que forma uma estrutura repressiva ao ímpeto plástico dos africanos escravizados começou a se formar a partir de um decreto real de 20 de outubro de 1621. O decreto outorgava, entre outras coisas, que nenhum negro, mulato ou índio poderia trabalhar como ourives.

Apesar de decretos como o de 1621, a atividade artística do negro foi bastante ativa entre os séculos XVII e XIX, como mostra os relatos dos viajantes Koster e Luccok. E os negros e pardos, também devido às vantagens “financeiras” de se utilizar essa mão de obra eram, geralmente, os obreiros de todas as artes praticadas na Colônia. Foi somente no século XIX que a atividade artística dos negros se rareou (especialmente no Sudeste), pois a competição com o emigrante europeu – já bem mais qualificado do que os negros na perspectiva econômica de então – fez com que o negro fosse excluído em detrimento da mão de obra branca. Além disso, com o declínio do estilo barroco e seu ethos “popular” e a ascensão do neoclássico – um estilo artístico que dependia de uma formação nas academias de belas artes – a expressividade do negro nas artes plásticas sofreu um pesado golpe.

Tal exclusão funcionou como força motriz para a criatividade e a constituição de uma identidade negra distinta e ainda mais resiliente. A exclusão do negro das práticas artísticas oficiais ligadas, especialmente, ao Estado e à Igreja, transformou os terreiros em vetor principal para o florescimento da arte negra e afro-brasileira como espaço privilegiado de produção de objetos indispensáveis ao culto e ao rito, que dialogam intimamente como heranças plásticas africanas.

A intolerância dos brancos e da religião oficial insistiu em considerar tais objetos como fetiches e transformá-los em corpus delicti. Assim, armavam-se então todo tipo de campanhas contra as manifestações religiosas negras, contra seu “fetichismo bárbaro” e a “imoralidade dos candomblés”. Dessa forma, nos dizeres de Abdias do Nascimento, os terreiros, solo privilegiado da resistência artística negra, atacado por todos os lados, desde os padres católicos até os olhos inquisidores da polícia, foram pressionados a se esconder nas florestas e encostas e muitos outros lugares que os protegessem dos olhos dos inimigos.

Agnaldo Manoel dos Santos nasceu em dezembro de 1926, numa localidade chamada Fonte de Beber, no vilarejo de Gamboa, em Mar Grande, no lado norte da ilha de Itaparica na Bahia. Apontado por Francisco Ramos Neto como original, espontâneo e, numa palavra, absolutamente único, o artista é bastante conhecido por produzir esculturas que se aproximam, de uma parte, dos arquétipos da cultura yorùbá, e de outra, dos protótipos da iconografia católica medieval.

A mãe de Manoel dos Santos, Teodora, nasceu na Ponta da Pataca, de Mar Grande e era negra tal como sua mãe, Gertrude, que tinha origem africana. Teodora teve quatro filhos, sendo Agnaldo Manoel dos Santos o caçula. A mãe do artista morreu com apenas 38 anos de “febre e tremedeira”. A mãe de Manoel dos Santos teve um triste fim marcado por muita pobreza e dificuldades para criar os quatro filhos. Ela havia arrendado uma roça de mandioca pela qual tirava o sustento para seus rebentos.

Seu pai, chamado Ignácio, nasceu em Santa Bárbara e se mudou para a ilha de Itaparica por ser roceiro e lenhador. Alcoólatra inveterado, Ignácio morreu em decorrência de problemas com a bebida aos 45 anos.

Manoel dos Santos teve uma formação residual na escola. Ainda no primeiro dia de aula, levou uma reguada na testa “só para aprender disciplina”. Porém, o artista não foi além de uma formação apenas básica. Em seu primeiro emprego, seu serviço era carregar caçuá de coco e conduzir alimária; entre doze e quinze anos, trabalhou numa caieira da Penha. Nesse trabalho, fazia de tudo: cortava, carregava lenha do meio da ilha para a praia, pinicava lenha em meio palmo e a utilizava para queimar cal. Também coletou blocos de arenito dos recifes e recortava-os em tamanhos menores com um machado.

O árduo trabalho cortando toras de madeira e carregando cal exigiam grande esforço físico e também uma enorme concentração e disciplina, características fundamentais também de um bom artesão. Em 1947, Manoel dos Santos se mudou para Salvador em busca de emprego. Conseguiu trabalhar em um almoxarifado de obras por aproximadamente um ano. Naquele lugar, ele observou o trabalho com ferro e concreto, a betoneira, o preparo de madeiras planas para ser transformada em colunas. Também em Porto da Barra, Manoel dos Santos encontrou um emprego de cortador de lenhas a machado.

Através de trabalhos temporários em Porta da Barra, o caminho de Manoel dos Santos acabou se cruzando com o do escultor baiano Mario Cravo Junior (1923-2018) no momento em que ele havia acabado de voltar dos Estados Unidos e estava realizando uma exposição na cidade. Quando a exposição acabou, Cravo Junior contratou Manoel dos Santos para tirar as peças do caminhão para depósito e, depois, para o cargo de vigia de seu ateliê.

Manoel dos Santos aprendeu a cortar mármore, manejar a prensa de gravura e outros trabalhos através da observação do ofício de Cravo Junior. Em 1951, ele começou a trabalhar em grandes pedaços de madeira, esculpindo obras a partir desse material. Manoel dos Santos passou, então, a ajudá-lo na disponibilização dos toros, desbastando-os e preparando-os. Esse foi o momento em que Manoel dos Santos pegou gosto por dar forma na madeira.

Um dia, Pierre Fatumbi Verger (1902-1996) visitou o ateliê de Cravo Júnior e deixou, sobre a banca, um livro de fotografias de esculturas africanas que Manoel dos Santos disse se chamar “Afro ou Africo”. É bem provável que o livro deixado por Verger tenha sido o livro de fotografias sobre a África chamado “Deuses da África”e foi essa grande obra que deu subsídio, coragem e força moral para o escultor começar com mais segurança, suas esculturas de orixás.

De alguma maneira, Manoel dos Santos interpretou aquelas fotografias como traços e formas que lhe pareciam familiares por causa dos seus descendentes (sua avó, como dito acima, era africana) e de sua infância. Figuras que ele vira no mato, no mar, no fogo da caieira, no povo da ilha, nas histórias de Teodora sobre Gertrude, na cara do canapu, nas pedras emersas da vazante, nos homens carregando cal até o saveiro e na enchente à noite.

Em certa ocasião, um escultor chamado Lênio Braga, amigo de Cravo Júnior, começou a fazer um oxê (machado de dois gumes, símbolo de Xangô) em madeira, mas não conseguiu terminar. Manoel dos Santos, pedindo licença, tomou para si a responsabilidade e concluiu-a. Aplicou pátina, pincelou zarcão, queimou-a e deu por finalizada. Antônio Rebouças encontrou o objeto no ateliê de Cravo Júnior e não pensou duas vezes: comprou-a.

Suas esculturas podem ser caracterizadas pelo aproveitamento de componentes plásticos, irregularidade da matéria, veios, fissura, buracos de bicho, cunhas, tarugas, bifurcações do galho. Manoel dos Santos aproveita tudo, incorporando-os à intencionalidade temática. Além disso, o corte original da madeira resulta em uma estesia que inspira outros sentidos, além do da própria visão. Transpõe-se em entidade de madeira em que o plano externo converge para o interno, dialogando, por exemplo, como a multiplicidade de planos temporais e espaciais que vemos na estatuária yorùbá.

Manoel dos Santos extraia do seu cotidiano as inspirações para suas obras. Elas, assim, advêm de uma mesma procedência ecológica e artística. Todas as soluções plásticas efetuadas nas esculturas de Manoel dos Santos são, entretanto, eruditas. Embora chamado por muitos como o mais africano dos escultores brasileiros, o escultor não utiliza em suas obras convenções estilísticas africanas. Para o antropólogo José Mariano Carneiro da Cunha, Agnaldo Manoel dos Santos deve ser visto como um artista nacional, cuja qualidade das esculturas permitiu uma inserção no mercado da arte internacional.

Em relação a Agnaldo Manoel dos Santos, afirmar uma inspiração atávica africana para suas obras é proceder de forma parecida com os ocidentais brancos, que durante muito tempo, definiram artistas e artes não ocidentais como primitivas, isto é, desprovida de intenções estéticas conscientes. Tais inspirações, segundo essa visão, viriam de alguma essência incrustada no gênio do artista e estavam armazenadas em seu espírito e apenas aguardavam o momento certo para vir à flor da pele. Esse tipo de pensamento essencialista, mesmo que bem-intencionado, acaba por retirar todo o mérito do artista em transformar o mundo em que ele vivia em soluções plásticas expressa em suas obras.

Trata-se, até mesmo de formas derivadas de racismo encoberto por uma camada de boa intenção, pois basta nos perguntarmos por que As Senhoritas de Avignon, de Picasso, não fez do artista espanhol um artista africano-espanhol. A resposta é que, no caso de Picasso, reconhece-se sua genialidade em inspirar-se em máscaras negras para subverter e forjar uma nova visualidade cubista. No caso de Agnaldo Manoel dos Santos, quando se repete a ideia de inspiração atávica, o artista apenas repetia, mecanicamente, algo que já existe a priori.

Manoel dos Santos era, antes de tudo, um sobrevivente. Como grande parte dos pardos e negros do século XX, ele vivia à margem do desenvolvimento da nação, sobrevivendo de biscates que lhe pagavam muito mal. No entanto, os tipos de trabalho que Agnaldo Manoel dos Santos exerceu ao longo da vida permitiram que ele desenvolvesse grande habilidade em talhar a madeira. Também deveria ter uma sensibilidade acurada para agarrar boas oportunidades de trabalho e de sobrevivência. O encontro com o artista plástico Mario Cravo Jr., que tinha um espírito generoso, foi providencial.

Agnaldo Manoel dos Santos teve a criatividade e a habilidade certa e na hora certa. A partir da geração dos anos de 1920, conforme nos mostra Daniel Pécaut no livro Os intelectuais e a Política no Brasil, diversos pensadores, inspirados por Lima Barreto e Euclides da Cunha, passaram a pensar e a buscar as raízes formadoras da nacionalidade. Não por acaso, na década seguinte, foram publicadas as grandes sínteses sociológicas que determinariam para sempre as discussões sobre o Brasil e sua gente: Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, foi publicado em 1934; Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, em 1936 e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., em 1942.

Concomitante a esse movimento de intelectuais, também, na década de 1930, são retomados os estudos africanistas no Brasil. É a partir desse momento que o elemento negro passou a ser concebido a partir de um ângulo de consciência antropológica cultural que promoveu uma reabilitação da presença negra no Brasil.

Dessa forma, são publicados: Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, em 1932 e Introdução à antropologia brasileira, de Arthur Ramos, em 1942, entre outros. Assim, a presença negra nas artes plásticas – e, por consequência, as noções pan-africanistas e de “négritude” de certa representação da África – ressurgiu de forma contundente a partir dos anos de1940.

É de se pensar, portanto, que quando se afirmou a inspiração africana atávica nas obras de Agnaldo Manoel dos Santos, essa identidade africana estava ainda em elaboração pelos movimentos pan-africanistas e da “négritude” liderados por pensadores negros – africanos e afro-americanos que haviam estudado na Europa –, como o senegalês Leopold Senghor (1906-2001), ou afro-caribenhos, como Aimé Césaire (1913-2008), por exemplo.

Chegamos, com isso, ao cerne da questão: tão importante quanto enfatizar a ancestralidade africana no olhar de Agnaldo Manoel dos Santos é, também, ressaltarmos a criatividade e a ação do artista em expressar o seu mundo, aquele que lhe chegava através da sua experiência vivida, na oralidade e no imaginário local, de traços africanos e católicos, conciliando essa vivência na subtração da madeira, dando-lhe formas plásticas de grande valor estético.

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Rafael Gonzaga, doutor em história social pela PUC-SP, autor do livro A jornada de Pablo

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