Governador do eu menino

Alê Bragion

 

Rua do meu destino. Do eu menino entre casarões antigos, paralelepípedos e calçadas irregulares. Rua do tempo narrador de um tempo de infâncias amarelas como a velha casa de minha infância amarela, de um tempo velho como aqueles velhos que, hoje mortos, subiam e desciam no vai e vem da rua do Centro, da rua do comércio, da Rua Governador – corredor principal de uma Piracicaba mítica vítima de sua gente. Governador do eu menino, rua da minha vida crescida em olhares de espanto, vergonha e admiração pelas destrezas desastrosas dos que se movem e se moviam pelas artérias centrais do teu coração de cidade.

Governar a dor. Me lembro. Me lembro do natais passados entre luzes opacas que achávamos tão brilhantes à época. Neon. Nesses natais, caminhões de papais-noéis lançavam balas de sonhos para as gentes que, pelas noites de comércio aberto, mais zanzavam alegres do que com dinheiro para comprar impossíveis desejos. Vejo, ainda, se vejo. Governador dos silentes, dos doentes de amor e de dinheiro. Dos que vendem o corpo e a alma nas esquinas de marquises cheias de ofertas e procuras, cheias de natais e prostituição, de igrejas, mercados, drogas e buzinas. Governador. Governar a dor é saber achar em seus paradoxos o amor sempre carente de amor.

Rua do meu destino ido, vivido, vencido. Suas transformações também me transformaram. O asfalto cobrindo mortalmente seu mosaico de pedras e histórias cobriu também meus pensamentos de criança. Seus casarões sucumbiram palmo a palmo ao capitalismo rural e brega que te quer vender como se fosses uma alameda da capital – ou da capitar. Rua Governador, te amar é captar sem medo sua metamorfose neoliberal funesta a apagar as marcas de seus carnavais, de seus desfiles, dos cortejos alegres da Banda do Bule que fazia o centro brincar com a vida nas manhãs de sábado que abriam a festa do Momo. Te lembrar é saber, depois, das noites de procissões – como a do Senhor Morto, que culminava num encontro com a Mãe Dolorosa no Largo do Mercado. Governador. Quanto pecado encoberto debaixo do manto divino e entreaberto da Virgem – e também por políticos espertos.

Rua Governador do que já fui e já fomos um dia: alma tranquila a darmos os braços um ao outro no passeio público – quando, aos domingos à noite, depois da missa, passeávamos por suas vitrines acesas de novidades e de vida alegre a alegrar sem esforços meu coração de criança, o nosso coração de criança, Governador. Porque éramos um, sim, rua e menino, a nos evoluirmos o destino em ingrata velocidade, em cruel feroz cidade a nos transformarmos na maioridade triste de nossa maturidade crua, nua e sem graça. Hoje, Governador, quem passa por nós mal sabe de nossas histórias – e mal sabe também o quanto assistimos juntos, em nossa dor muda, a descida de tantos aos infernos da rudeza e da mediocridade.

Aos fins das tardes – e não há aqui mais do que um bairrismo feito de um saudosismo necessário, porém liberto e franco – eu menino me sentava ao portão de minha casa, com meu cachorro, e farejávamos juntos o mundo daqueles dias. As moças que te cruzavam, Governador, saindo de seus empregos nas lojas do comércio. Mulheres de elegância discreta que cansadas ao fim de suas jornadas. Homens de todos os tons, de todas as cores, de todos os tamanhos e sorrisos e olhares e gestos e almas e esperanças: trabalhadores e trabalhadoras da labuta diária daquela vida vivida no centro da cidade – e que se encerrava, no todo dia, por volta das seis da tarde, e que criava esse mar de gente que te subia e te subia, Governador, para as casas e para as ruas de uma periferia ainda não tão distante.

Não somos mais os mesmos, Governador. Nem tenho mais um cachorro a sentar comigo ao pé de um portão da casa que também não tenho mais. Mas – apesar de encoberta por panfletos sujos, por promessas de felicidade fácil, pisadas por pés que te desconhecem e por mãos que te vendem como se vendem os corpos em tuas esquinas –, ainda sei de ti – Governador – quando em alegre obrigação desço por seu leito agora rarefeito de verdade. Nessas ocasiões, quando nos revemos, ainda sinto seu espírito – seu velho espírito, tão velho como o meu – a me dar o braço para um passeio. E te sei, como me sei, que juntos ainda guardamos a saudade de um mundo extinto – ao mesmo tempo em que acalentamos a ilusória esperança de que num novo dia, quiçá, possamos recuperar em nós a alegria de podermos estar juntos e vivermos como (éramos) antes.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

 

 

 

 

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