A ancestralidade que pulsa

Adelino Francisco de Oliveira

 

No final somos todos filhos de mãe África. Há uma ancestralidade profunda que pulsa na humanidade em seu conjunto. Dizer que a África se situa na gênese, na origem mais remota da espécie humana é uma verdade antropológica. Mas é preciso entender agora como a mesma África das origens de todos os povos se tornou o destino manifesto da humanidade.

Nós, pretos e pretas, trazemos essa ancestralidade na pele, demarcando nossa corporeidade, compondo nossa experiência fenomenológica mais imediata no mundo, em uma história de dores, lutas, resistências, mas também de muita vida e dignidade. Em um reducionismo enlouquecedor, próprio de sociedades superficiais, a cor da pele, delineando todo racismo e preconceito, acabou por definir a dinâmica das relações cotidianas e mesmo das estruturas sociais.

Mas é fundamental dizer que a ancestralidade carrega um sentido que ultrapassa em muito a dimensão da corporeidade. Há uma memória ancestral, que denota uma sabedoria perene e profunda na maneira de interpretar e pensar a própria existência. Essa sabedoria ancestral está registrada na ciência, na mística, nos mitos, na religiosidade, nas tradições orais, nos ritmos e cantigas mais tradicionais, nas rodas circulares.

Lembro-me, por exemplo, de minha mãe, Paula, que, assumindo a função de griote (griô) sempre tinha uma história – resquícios da tradição oral – cheia de sentidos e valores morais para contar diante das situações desafiadoras do cotidiano. Quando eu estava abatido, por tanto bullying em relação ao meu cabelo, dona Paula, com sabedoria e ternura, falava sobre meu tio-avô Lucas, que ficava penteando e ajeitando o cabelo, da mesma maneira que eu fazia. Ela ensinava que a cor de pele, o tipo de cabelo, a sonoridade da voz, o jeito de olhar e até a esperança no viver guardavam uma história familiar. Nunca caminhávamos sozinhos, pois nossos ancestrais estavam vivos e presentes em nós.

Antes da minha mãe assumir o lugar naquele matriarcado, contávamos com as avós, mulheres negras, potentes, cheias de sabedoria, sempre com uma narrativa de esperança, capaz de explicar os dilemas da existência. As mais velhas desfrutavam de um lugar de dignidade em todos os encontros da família, em cada conversa que fazia memória da força de suas trajetórias. Compreender-se fazendo parte dessa história era como que um antídoto contra o desprezo socialmente produzido pelo racismo. Apesar de todo preconceito, tínhamos um lugar no mundo, uma ancestralidade.

Diante do desespero de um mundo vazio, cindido, carente e desencontrado na esterilidade do materialismo, talvez as sociedades colonizadas percebam a tempo como retornar à fonte originária, voltando-se para mãe África em busca da riqueza mais preciosa, que é a vida cheia de sentido e esperança. Essa ancestralidade que pulsa descortina-se como o caminho de reencontro de nossa humanidade perdida. A esperança vem da África!

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Adelino Francisco de Oliveira, Doutor em Filosofia. Mestre em Ciências da Religião; Professor no Instituto Federal, campus Piracicaba; [email protected]; @Prof_Adelino_; professor_adelino

 

 

 

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