Quando a tela invade a escola

Lilian Lacerda

 

A série sul-coreana “Round 6”, da Netflix, se tornou uma febre mundial, e atualmente é a produção mais assistida do serviço de streaming.A serie retrata uma competição entre pessoas endividadas, com baixo poder aquisitivoque aceitam participar deum jogo de sobrevivência em busca de prêmio milionário. Todavia, é no local da competição que os participantes descobrem que não avançar de fase implica em morte. Outro ponto a destacar refere-se a modalidade dos jogos que são representados por brincadeiras infantis. Talvez esse seja um dos fatores a atrair a atenção das crianças, mas não só.

A história remonta os jogos romanos, cujos gladiadores foram um fenômeno que deu aos espetáculos de morte uma proporção e uma dinâmica sem precedentes.Do ponto de vista da sociedade contemporânea, seria quase que incompreensível que esses eventos violentos fizessem parte da sociedade considerada marco da civilização ocidental.

Como nos espetáculos romanos, nos jogos gladiatórios, a narrativa da série “Round 6” traz em seu conteúdo e forma um alerta a questões sociais vigentes e indica a reflexão a partir de uma discussão crítica para além do binarismo burguesia/camadas populares de modo a ponderar acerca do significado da violência manifesta nas mídias.

Sobre “Round 6”, seus personagens e seus jogos de fácil identificação, cuja proximidade com o real, diferentemente das produções como “Jogos Vorazes”ou “Divergente” com narrativas distopias, justifica sua avassaladora audiência. Todavia, a série despertou a curiosidade do público infanto-juvenil e muitos estudantes que acompanham a série estão levandoos conteúdospara o ambiente escolar. Isso colocou os educadores em alerta.

A partir de jogos infantis e de um cenário lúdico, o conteúdo dasérie não pode ser, em hipótese alguma, uma opção de entretenimento infantil. Apesar da classificação indicativa da série ser 16 anos, mesmo para os jovens, a temática deve ser socializada, discutida. A série aborda temas importantes, se discutidos, como a desigualdade social, mal-estar social, desesperança.

Causa espanto e perplexidade o fato das famílias permitirem as crianças o acesso ou mesmo, expô-las a esse tipo de conteúdo: violência explicita, tráfico de órgãos e suicídio, temas demasiadamente complexos ao entendimento infantil.

Tamanha repercussão da série” Round 6” entre crianças e jovens motivou escolas do Rio de Janeiro e do Paraná a emitirem cartas de alerta aos pais. Vale salientar que é dever da escola observar e transmitir aos pais fatos do cotidiano, mas verificar o que as crianças consomem é responsabilidade da família.

Vale ressaltar que as plataformas de streaming oferecem aos consumidores, além da indicação classificatória de idade, opções de bloqueio a esse tipo conteúdo, como o controle dos pais, mas nem sempre existe a conscientização da família para o fato.

Isso acende um alerta. “Round 6” serve de pano de fundo para a discussão acerca do que as crianças e os adolescentes tem consumido, pois é sabido que a mera proibição imposta pelos pais ou restrição possibilitada pelas plataformas não dão conta da problemática.

A partir do acesso ao conteúdo, mesmo que por pura por curiosidade, resta a família apostar num diálogo honesto e cuidadoso, que no caso da criança, que ela entenda que ainda não está pronta para consumir este tipo conteúdo. Já com os adolescentes, cabe abrir espaço para a reflexão e discussão sobre o assunto.

Enquanto educadores, estamos acompanhando a discussão, mas não estamos instrumentalizados a intervir já cabe as famílias a decisão do que consomem e de como educam sua prole. O que fazemos é cultuar valores de solidariedade, cooperação, empatia e amizade entre as crianças.

Será que os educadores estão prontos para esse enfrentamento, de forma abrupta? Estamos vivenciando um período de perdas. O país ultrapassou a marca de 607 mil mortos por Covid-19. Apesar de parecer que normalizamos a morte, lutamos diariamente para manter a saúde mental e lidarmos com a temática da “morte” presente diariamente nos meios e nas mídias sociais.

Cabe um alerta aos gestores escolares de trazer a problemática ao contexto escolar, de modo a suscitar reflexões sobre a temática da série, bem como os perigos que o consumo desse tipo de conteúdo pode trazer para crianças e adolescentes.

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Lilian Lacerda, doutora pela PUC-SP, professora, psicanalista, pesquisadora

 

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