A Biblioteca como símbolo de resistência

Alê Bragion

 

A psicanálise sentenciou há mais de um século o fato de que “ninguém é inocente na linguagem.” Quer dizer, e traduzindo esse conceito de natureza freudiana em língua de dia de semana, o fato é que tudo o que dizemos não se dá de maneira fortuita – pois contamos (mesmo involuntariamente) com um arcabouço de construções mentais de ilimitado final chamado “inconsciente” (o famoso “Unbewusste”, em alemão).

Assim – e se concordando com a psicanálise aceitamos que não dizemos à toa as nossas mais célebres impropriedades ou o que achamos ser o “crème-de-la-crème” de nossa douta sabedoria –, devemos aceitar também que não mais podemos nos esconder ou nos proteger atrás de muletas linguísticas feitas de expressões como “não foi bem o que eu quis dizer” ou “não era bem o que eu queria falar (ou fazer)” ou ainda o “eu disse (fiz) uma coisa e pensei (fiz) outra”.

Estando Freud com a razão, a régua com a qual podemos analisar as nossas falas e a dos outros acaba por nos sentenciar também uma imensa maldição. Afinal, descortinar o que está por trás da nossa própria linguagem e da linguagem alheia pode passar de uma prática agradável a uma viagem terrível em questão de segundos. Mas há só vilezas nesse baú mental do qual se sacam as peças a serem vestidas na vida do dia a dia? Felizmente, não. Em todo caso, surpresas sobre quem somos e – claro – sobre quem são os outros não raro podem causar estranhamentos e decepções.

Assumindo que ninguém é inocente na linguagem – muito menos eu –, explico e explicito (antes de qualquer análise alheia do meu inconsciente) que esta imensa introdução, fora dos padrões canônicos dos artigos de opinião deste e de outros matutinos, não tem senão o desejo de (e olha a psicanálise de novo) firmar com um pouco de tinta filosófica que o descalabro que estamos vendo e ouvindo acontecer em nossa cidade em relação à cultura e à educação não é obra do acaso, não está acontecendo sem querer nem é apenas uma arrojada tentativa (ou uma experiência) que intenta revolucionar esta terra donde o peixe para – e morre.

A Biblioteca, a Pinacoteca e o Observatório – para citar apenas as instituições no foco das ações dos gestores atuais neste momento, em Piracicaba – são, assim, mais do que prédios públicos a abrigarem acervos e salas (sendo, na verdade, também símbolos, construções que carregam sentido, história, tradição e conceitos). Arquétipos, estimulam olhares, despertam curiosidade, marcam posicionamentos, representam uma identidade e evidenciam posicionamentos políticos e ideológicos.

“Alterar” a natureza de “prédios” como esses (aqui ou em qualquer lugar do cosmos) – propondo transferências, trocas, desmontes e substituições descabidas – é atacar também tudo o que simbolicamente representam, inclusive a imagem que constroem no imenso inconsciente coletivo da cidade, do estado e do país. Do mesmo modo (e em qualquer lugar do universo) o confronto com artistas, com fazedores de cultura, leitores e leitoras, bibliotecárias e bibliotecários, professores e professoras, alunas e alunos é também – por fim – um confronto com os símbolos que representam o interesse vivo pela “cultura” do saber (e tentar mudar o curso de suas histórias é – sim – tentar mudar, para pior, o curso do conhecimento em si).

(Não à toa, do micro ao macro, cabe lembrar que não temos mais no plano nacional um Ministério da Cultura, que perdemos milhões em investimento em pesquisa, que temos um ministro da educação que afirma que há no país universidades e faculdades demais e um (des)presidente que acha que os professores são “problemas” para a nação.)

Por isso, neste dia tão importante para a história da Biblioteca Pública Municipal de Piracicaba “Ricardo Ferraz de Arruda Pinto” (dia em que celebramos 11 anos da inauguração do prédio que, esperamos, seja o seu definitivo – após mais de setenta anos de itinerância), entendamos que celebrar este aniversário é mais do que comemorar a inauguração de um prédio, é marcar a resistência dos que acreditam que a cultura, a educação, a ciência e o conhecimento são “bens” (e símbolos) que precisam – a toda pena e custo – estar sempre (e sempre!) acima de quaisquer outros.

Não para menos, o ato de resistir é também muito simbólico – diga-se de passagem.  Ainda, e se ninguém é inocente na linguagem, elevemos a nossa resistência à ampliação de nossas vozes (hoje ainda mais) em rechaço a qualquer projeto que não tenha como norte o desenvolvimento – em grau superlativo – de nosso patrimônio cultural, artístico, científico e educacional. E resistamos.

Parabéns, Biblioteca Pública Municipal pela data, simbólica, que celebramos hoje!

A Biblioteca fica!

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

 

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