A cidade sem livrarias

Alê Bragion

 

Fantástico? Talvez ainda fosse o conto que eu estava lendo. Não sei se fechei o livro ou não – ou se comecei eu mesmo a escrever uma história. Leitores têm disso. As vidas se fundem, as leituras se confundem. Ao final, tudo parece sempre tão real. Não. Não é possível. Acho que a história havia acabado. Só assim é que eu podia me ver em busca de um algo mais para os olhos. Os livros na estante do meu escritório arfando cansados. Estante é coração de mãe. Os olhos, crianças a chorar. Eu estava na história? Eu a escrevia? Não. Eu era ela. Eu sou ela. Então, que eu me mova ou movesse em busca do cálice sagrado escondido entre brumas: outro livro? Outro.

Uma livraria era tudo o que eu preciso. Imaginária ou não, minha consciência narrativa – em primeira pessoa tão singular – me permite agir por conta própria. Por que não aproveitar? Por que a consciência impede-nos de sermos simplesmente felizes? (Acho que emprestei isso de algum poeta). O que em mim pensa está sonhando? (Outra fala roubada). A tabacaria de minha vida onde está? Digo, a livraria. Onde estão as livrarias? Assumo a ação: aceito ser personagem. Saio rumo às livrarias da cidade.

Pelas ruas do Centro não vejo livrarias. Como é possível? Onde estão elas? Corro para a Boa Morte. Havia ali ao menos duas livrarias, tenho certeza. Na Praça, a caminho, pessoas vestindo-se como jogadores da seleção brasileira bradam palavras de ordem contra a democracia. Deve haver um engano. Abro e fecho os olhos. As pessoas estão lá ainda. Pedem a volta da força bruta, dos pelotões da morte e do estado de exceção. Haja! Só posso mesmo ser uma personagem de Atwood ou Huxley. Mas – e as livrarias?

Entro pela Boa Morte (talvez, em meio ao delírio absurdo em que me vejo, a expressão “boa morte” me soe agora como a um bom presságio). Chego à porta da velha Libral. Estranho. Está cerrada. O que aconteceu à Libral? Sinais dos tempos? Quero dizer, índices da narrativa? E as demais livrarias dali? Procuro em volta. Nada. Sinto que é preciso correr ainda mais.

Corto pela Rua XV. Procuro por uma livraria enorme, dessas de grife – impossível ter desaparecido. Pelo caminho, a massa humana brada em prol da ditadura. Um grupo de mulheres pede para ganhar menos, dizem que são mulheres, frutos de fraquejadas, e que merecem receber menos salários. Em suas camisas, a frase: “belas, recatadas e do lar.” Continuo sem entender. Olho no meu celular a data de hoje, o mostrador oscila o ano: 2021, 2018, 2016, 1988, 1984, 64.

Chego à Rua XV. Trevas. Outra grande livraria sumiu. Não há mais nem sombra dela – no seu lugar apenas a marca de uma grande dentada. Corro de volta à Praça, a velha Livraria Brasil ainda deve ter raízes. Trombo com mais pessoas vestidas de jogadores de futebol. A livraria Brasil também é pó no pó. Desespero-me. Um homem com uma bíblia embaixo do braço me informa que havia visto há pouco uma livraria em funcionamento, na esquina – mas que Deus e o grande Ditador, em breve, acabariam imediatamente com aquela pouca vergonha. Na esquina, minha última esperança: a livraria com café, ao lado da Catedral, não pode ter sucumbido.

Caos. Também não há mais livraria ali. Será possível? Não há mesmo mais livrarias no centro da cidade?  Olho para frente e entendo o que aconteceu. (Ou o que pensa, em mim, ainda está sonhando?). No meio da rua, uma enorme boca aberta masca livros, livrarias, bibliotecas – e cospe pessoas de amarelo aos montes. Como um grande caminhão de lixo às avessas, a boca enorme vem triturando também leitores e raciocínios enquanto vomita ignorância, preconceitos e senso comum. Como a cortejar a um deus, a massa, de joelhos, ilumina com celulares a boca enorme a devorar conhecimento e a espalhar dejetos mal cheirosos. (Talvez eu esteja mesmo num conto. Talvez agora seja Borges ou Cortázar a me usar).

Corro para casa a me proteger – e a proteger meus livros. Tranco a porta do escritório e crio trincheiras com as estantes. Personagem de meu próprio tempo narrativo, penso que posso escrever o final dessa história e me livrar desse mal – que se dane quem me ficciona! É preciso agir rápido! Pouco ainda resta. Entre pilhas Saramago, Guimarães e Machados, ligo o rádio para saber se a notícia de que cidade queima com em Fahrenheit é mentira e que ainda estou preso a um conto dantesco que lia.

Azar. Mau agouro. Tenebrosidade. A voz que escapa pelo rádio vomita impropérios sobre livros e sobre a biblioteca que ainda resta viva no front – ameaçada agora pela grande boca. Será um programa de Orwell? Chegarão os marcianos para nos salvar? A voz, no rádio, segue distópica – institucional, subgovernamental – afirmando que livros são desnecessários, que ninguém mais precisa deles e que a grande tela é tudo o que nos importa – a grande tela e remédios para vermes, aos montes.

Desligo o rádio. Preciso escapar de alguma forma. Preciso agir rápido! Talvez seja melhor mesmo tentar escrever algum outro desfecho. Sento-me para escrever. Enquanto escrevo, ouço lá fora o mascar brutal da boca fétida que se aproxima.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

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