Entre capitalismo e socialismo, uma possível terceira via

Armando Alexandre dos Santos

 

Concluamos hoje esta longa série de artigos a respeito de instituições legais da Antiguidade que podem ser consideradas remotas antecipações do moderno conceito de Justiça Social.

A legislação mosaica sobre o ano sabático e sobre o ano jubilar, que apresentamos nos últimos artigos, não deve ser julgada, obviamente, com os critérios e os valores admitidos na modernidade. Seria anacronismo fazê-lo. Considerando-se o mundo antigo, com a mentalidade e os costumes vigentes na época, não se pode deixar de reconhecer que era uma legislação extraordinariamente benevolente e benéfica. É verdade que admitia a escravidão e reconhecia costumes que hoje nos chocam. Mas, mais uma vez, evitemos julgamentos baseados em anacronismos: os tempos eram outros.

De acordo com essa legislação, a terra não era uma propriedade absoluta, no sentido romano (“jus utendi, fruendiac abutendi”, isto é, o direito de usar, de fruir e de dispor plenamente), mas era uma propriedade relativa. Os homens eram, na verdade, usufrutuários e não proprietários da terra. Era, no fundo, um comodato que o Senhor dava, mediante condições, a seu Povo. O direito sobre a terra era verdadeiro e eficaz, mas não era absoluto.

Essa legislação tinha alguns efeitos muito salutares sobre a economia:

1) Protegia familiares e herdeiros contra a dilapidação dos bens da família por parte de proprietários perdulários; e evitava a decadência irremediável das famílias em consequência de eventuais maus administradores.

2) Impedia a especulação imobiliária e a improdutividade das terras. À medida que se aproximava o próximo Jubileu, as terras caíam de preço, uma vez que seria menor o proveito que delas extrairia o comprador. Isso permitia, de modo equilibrado e bem achado, que não houvesse especulação imobiliária propriamente dita. Ninguém comprava terra para deixá-la inculta, esperando que se valorizasse. A terra se tornava, pelo sistema, altamente produtiva. Só um comprador louco não a faria render no tempo limitado em que pudesse dispor dela.

3)Incentivava à poupança de grãos, para haver o que comer nos anos em que a terra não podia ser trabalhada.

4) Incentivava ao plantio de árvores frutíferas que produzissem por si mesmas, independente de cultivo e cuidado, até mesmo nos anos de repouso.

5)Proibia a usura entre os israelitas e, também, entre os estrangeiros que viviam com os israelitas. O dinheiro, portanto, não podia ser fonte de dinheiro; a única fonte de enriquecimento era o trabalho – sem contar, naturalmente, os despojos tomados em guerra contra adversários externos.

6) Preservava a terra de seu esgotamento e, com isso, ajudava a conservar o meio ambiente.

Por fim, numa ótica religiosa, essa legislação incentivava a confiança em Deus: o israelita se via impedido de trabalhar em certos anos, mas o Senhor Se comprometia a não deixar que nada lhe faltasse e até, no último ano de trabalho anterior ao ano jubilar, prometia dar uma produção triplicada para compensar.

Comparadas as duas legislações, a mesopotâmica da Mîsharum e a mosaica do Jubileu, vemos que ambas, cada qual a seu modo, visavam ao bem comum e às conveniências do organismo social como um todo. Ambas limitavam, por certo, o alcance do que hoje entendemos como direitos e prerrogativas pessoais (especialmente no tocante à propriedade privada), mas asseguravam um benefício maior ao conjunto da sociedade. Favoreciam, pois, ao bem comum mais do que ao bem individual.

A Mîsharum era declarada pelos soberanos babilônicos apenas se e quando estes julgavam oportuno fazê-lo. Já o ano jubilar tinha data marcada e se realizava independente da vontade dos governantes; seus benefícios, a esse título, eram mais garantidos, sólidos e permanentes do que os da Mîsharum.

Feitas essas considerações, podemos encerrar este artigo com algumas indagações.

O problema gigantesco criado pelo moderno sistema capitalista, de um acúmulo desmedido de bens, acompanhado de bolsões de pobreza quase irremediável, não poderia ser evitado se nossas legislações contivessem dispositivos reguladores sábios, inspirados na Mîsharum e no Jubileu? A inflexibilidade, a irretroatividade e a excessiva rudeza de uma aplicação draconiana das leis do mercado, não poderiam ser corrigidas por uma legislação que, sem ilusões igualitárias e sem desestimular a livre iniciativa, moderassem sabiamente a distribuição das fortunas no conjunto da sociedade?

O socialismo propõe uma sociedade igualitária, em que não haja ricos para não haver desigualdade; com isso, desestimula a produção e tem como efeito a miséria generalizada – como aconteceu no passado, na finada União Soviética, e ocorre ainda hoje em nações como Cuba, Venezuela, Coreia do Norte e outras mais. O capitalismo destemperado, entendido sem mecanismos controladores, produz riqueza e, de modo geral, tem como efeito a criação de uma imensa classe média que também é largamente beneficiada, mas não resolve o problema dos bolsões de pobreza.

Não seria no modelo da Mîsharum ou, mais ainda, no do Jubileu mosaico, que se deveria buscar a inspiração para a procura de um “juste milieu”, de uma terceira via que evitasse os males do capitalismo desenfreado e, ao mesmo tempo, da falsa alternativa socialista?

Obviamente, isso somente se poderia realizar abolindo de todo o sistema bancário moderno, que nada produz e somente lucra com a usura. E aí começam as dificuldades…

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

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