Restaurantes, mística e estigma

Cecílio Elias Netto

 

Declaro-me absolutamente insuspeito para afirmar, reafirmar, proclamar a excelência da arte culinária. Digo-o, também, com um sentimento de santa inveja. Pois, dessa arte magnífica, o mais próximo que consegui chegar é preparar minhas pipocas no micro-ondas. Com a cozinha, a minha é uma história lastimável. Consideram-me perigoso tão logo chegue à cozinha.

Isso posto, retomo o elogio à arte culinária. A história da alimentação é a própria história da humanidade. E, por isso mesmo, fascinante, temperada de simbolismos e de religiosidade. Não há como fugir à generosidade da Mãe Terra. Que, no Gênesis, já nos fora dada como fonte de nosso alimento: “toda erva de semente que existe sobre a face da terra, e toda árvore que produz fruto com semente: (…) e todos os animais da terra, e todas as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam, todo os vegetais eu lhes dou para alimento”.

Eis, pois, que o Criador privilegiou o ser humano com todas as coisas que existem. Pelo menos é o que está escrito. E a dádiva – penso eu – foi por ser, o homem, o mais belo sonho de Deus, criação à sua “imagem e semelhança”. Pena que, muitas vezes, o sonho mais se revele como pesadelo. Sei lá. O fato é que a alimentação conta toda a história do ser humano. E isso é fascinante. Pois vemos o homem sobrevivendo desde os simples vegetais até a descoberta do fogo e, em seguida, com infindáveis invenções gastronômicas. E a mudança de hábitos. E a criação de objetos e a maneira de preparar os alimentos. Enfim, uma história sendo, ainda, narrada.

E o vírus, nessa história alimentar, quais transformações trará? Ou já não as trouxe, com famílias voltando a preparar seus alimentos em casa, um retorno ao fogão? Acredito estarmos começando a recuperar sagrados valores da vida: a comensalidade, a ritualização socializante da alimentação. Pois a civilização começa a revelar-se quando as pessoas se sentam à mesa. Está em Plutarco: “Nós não nos sentamos à mesa para comer, mas para comer juntos.” Mas, cada um com seu prato nas mãos, diante do televisor, isso é comer juntos?

O fechamento forçado de bares e restaurantes tem sido perda que ultrapassa o econômico. Eles são herdeiros de encontros centenários ocorridos em históricas pousadas do passado, o estar juntos em albergues, tavernas e tabernas. E, também, em botecos e botequins. O mistério da transformação do pão e do vinho em corpo e sangue aconteceu num pequeno lugar de comensalidade. Numa ceia, a ceia eucarística. E, ainda agora, o solene, o amoroso, o congraçamento acontecem em almoços e jantares, em cafés da manhã, em chás da tarde.

Outros tempos, novos tempos? Não creio sejam assim tão novos. Para muitos – em especial, no radicalismo religioso – criou-se, para restaurantes e bares, o estigma de serem lugares de vícios e de embriaguezes. Mas são seculares. Não teria sido, talvez, por excesso de vinho que Judas cometeu aquela besteira? Não há como negar haja uma fascinante mística em torno dos restaurantes. Que nasce desde a criação do primeiro deles, em Paris, como um lugar de energização. “Restaurant” era um caldo de carne para energizar as pessoas. E “restaurateur” e “restauratrice”, os responsáveis pela generosidade. A partir de então, o restaurante tornou-se centro e palco de acontecimentos que mudaram a história da humanidade.

Esse vírus idiota atrapalha-me, também por impedir encontrar-me com amigos queridos para filosofices desimportantes. Ao sabor da cervejinha, da caipirinha, do lambarizinho frito. Preciso restaurar-me. Urgentemente!

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected]); Blog: cecílio.blog.br

 

 

 

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