Pira na língua

Alê Bragion

 

No ouvido, no lido ou no falado, que outra cidade – senão a nossa – tem tão afiado o lápis da linguagem de sua gente? Na “língua de dia de semana” – como diria o velho Rosa, de Cordisgburgo – poucos têm no dito e no escrito o verbo tão vivo quanto o que na terrinha daqui se agita na verve do povo.

Posto isso no assim pronto da história das gramáticas, é bom que se lembre que não há nada de novo quando se aceita, em ofício, que o uso dos “erres” tortos e retroflexos – que tanto travam a boca das gentes – não tem nada de feio ou de errado. Pelo seu contrário! No arco, no tarco e na verva, a cidade já se deitou e se rolou de se fazer famosa pelo país afora (e que continue nesse assim seja!). Aliás, e se destacando ainda mais na roça da douta sociolinguística, Pira tem até dicionário próprio, e dos bons – escrito por quem entende do riscado.

De prosa em prosa, o caso (ou causo) é que nem só de verbetes se faz o caipiracicabanês. Há também na glosa mole conterrânea construções morfossintáticas (para gastar nesta crônica um termo clássico) que são únicas. Quem nunca ouviu nestas bandas a expressão “quihoraquigora”? Fusão de “que hora que é agora?” que advém ainda de “que horas são agora?”. Na gramática “do mulato sabido” – como escreveu Oswald de Andrade – tal fusão pode ser chamada de aglutinação, e aparece em palavras que o povaréu não-piracicabano usa com todo rigor e pompa (como em pernilongo e aguardente, por exemplo).

Também em outras línguas isso de aglutinar a língua e as coisas ocorre a rodo. No alemão e no francês, por exemplo, aglutinações, contrações e justaposições dão mais que chuchu na cerca. Por exemplo, sabe como se chama o famoso castelo construído na Baviera, no século XIX, por Josef Frederich? Neuswanstein! De: Neu (novo) + swan (cisne) + Stein (pedra). E todo mundo acha lindo! Sim. Pira e a Baviera tem algo em comum e que está para além da mútua e triste atração diabólica pelo fascismo.

Um dos casos mais gostosos, poéticos e gramaticalmente curiosos que já vi em nossas bandas noivacolinenses, no entanto, acho que pouca gente conhece. Ali pela “Rua Voluntários,” há alguns anos, havia uma casa singela com um cartaz ainda mais singeloso e que trazia o anúncio: “Mora-se um pedreiro”. Lindo! Bairrismo à mostra, cabe reconhecer que só mesmo o piracicabano para se preocupar com uma escrita tão inventiva. Não houve preguiça, por parte do pedreiro-autor, para a elaboração do período. Nada de simplicidade também – apesar da simplicidade da casa e da oferta. Aliás, a dignidade do labor anunciado exigia, sim, uma sintaxe criativa, rica e pouco convencional. Nada de um enxuto anúncio como “pedreiro” ou “faz-se serviço de pedreiro”. A riqueza do “mora-se um pedreiro” vai muito além. É poética.

Gramaticalmente, há em tal construção, a meu ver (e posso estar errado), uma inversão das boas. A princípio, nessa oração o “se” parece (falsamente) revelar o que nos compêndios gramaticais se chama de índice de indeterminação do sujeito (como em “mora-se bem naquela casa”). Mas a presença da palavra “pedreiro”, ao final, elimina essa indeterminação. Eita! Ou seja, o autor do cartaz em questão “mora” mesmo muito bem na arte da língua da cidade, pois, no muque, fez com que o verbo morar, ao lado de “se” e de “pedreiro”, transformasse-se repentinamente numa espécie de “reflexivo” (como em “mamãe abana-se com o leque” ou “Pedro cortou-se com a faca”), forçando o “se” a ser, em outro olhar, parte integrante do verbo. Difícil? Difícil. Mas inventivo. E, salvo melhor análise, “mora-se” o período numa influência que “quer-se” lusitana – pois não?

Por fim, e mais do que um mero exercício gramatical, há ainda no anúncio desse filólogo-pedreiro uma refinada poesia do pertencimento, uma exaltação de evidente cumplicidade entre o que se é, o que se faz e o que se funda no tempo-espaço do existir na simplicidade. Afinal, não bastou ao pedreiro-poeta anunciar o seu serviço, mas reconheceu-se ele naquilo que é e faz e tem de seu: a sua casa (simples), humana, alicerçada na beleza de ser de sua história.

“Mora-se um pedreiro”. Que lindo! Que inveja boa. Coisas da língua de Pira. Só de Pira. Onde bons pedreiros revelam-se, por que não, também bons poetas, e onde a cultura se constrói ainda singela e bela – mesmo que à revelia de tanta gente obtusa e sem poesia que se esforça diariamente para desmontá-la aos olhos de toda a gente.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

 

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