Grito dos Excluídos

Eloah Margoni               

 

Aos quinze anos, piracicabana vinda de classe média religiosa, não debutei na sociedade, conforme o costume da época. Só decidi, com firmeza, não mais ir à missa dominical nem ser crismada. A tal sedição nem se seguiram quaisquer altercações com deus ou revolta contra o mesmo de minha parte, pois tinha certa impressão de não haver ninguém acessível no firmamento contra quem me indignar. Contudo, anos depois, ouvi de um religioso que pessoas, mesmo ateias ou agnósticas, podem ser consideradas implicitamente cristãs. Por estarem em consonância com o que pregou Jesus Cristo, suponho. Soou-me bem no momento, mas sobre isso nunca tive total certeza. Porém, se o religioso tinha razão, também o contrário deve existir, ou seja, pessoas que, seguindo todos os rituais e preceitos eclesiásticos, não trazem em si as orientações, ações nem as ideias de Cristo.  E não só em seitas que pipocam aqui e acolá, onde falta o mínimo estudo formal a seus pastores e bom senso ao rebanho, mas também nas religiões cristãs mais tradicionais. Nessa toada, o que pensar de um religioso de projeção local que tranca as portas da igreja, a Catedral de Santo Antonio por sinal, em pleno horário de missa, impedindo eventual refúgio ao grupo que seguia o Grito dos Excluídos no último dia 7 de setembro?

O que foi dito acima (fechamento das portas) de fato aconteceu. E olhem que as manifestações anuais que compõem o Grito tiveram origem em 1993/94 na CNBB! Já em 2021, ano de extremismos de direita e incitações ao golpe final, com clima hostil de ameaças, grupos progressistas e pessoas religiosas saíram às ruas com valentia, para lançarem gritos por aqueles que não podem gritar. Pensavam poder contar com a igreja como abrigo, no caso de serem atacados por radicais conservadores. Que nada!

Sabem aquele padre, Júlio Lancelotti? Então, agora pensem no seu oposto em termos de atitudes, pois um desse tipo aportou em nossa cidade, lamentavelmente. Mas não acabou aí.  O cortejo, que passou pela igreja de São Benedito, jogou nos degraus abandonados e rotos, mistura lavável feita com corante vermelho, para simbolizar o sangue de mártires e de vítimas do descaso, numa cena teatral. Mor grita. Destruição do patrimônio histórico da cidade! Disseram-me, sem que eu saiba detalhes de nada, que até boletim de ocorrência se fez contra os manifestantes. Aí falei “seria absurdo! Meter gomalina no cabelo, sair de Carmen Miranda  requebrando tico-tico no fubá na Praça José Bonifácio faria mais sentido”. Meu interlocutor riu: rrrrssss (é uma pessoa que gosta de rir assim às vezes).

O episódio remeteu-me ao passado, porém. Há anos, na tribuna da Câmara dos Vereadores ouvi, por acaso, a fala mais cortante, mais pungente, mais dorida que jamais ouvira ali. Um senhor idoso, negro, alto, magro, humilde e religioso, vestido com paletó de terno, contava como os negros, no passado, não podiam entrar na catedral e que a igreja de São Benedito fora conquista deles. Mas os “anos modernos” foram corroendo e roubando o terreno da igreja, seu jardinzinho, seu perímetro, para estacionamento de uso da Câmara de Vereadores e que só faltava estacionarem na sacristia, dizia ele. Emocionou-me muito. O pior é que suas palavras não sensibilizaram autoridades. O descaso e abandono daquela igreja continuam; seu terreno nunca foi reavido, está sempre ilhada por veículos, não recebe restauro mínimo nem pintura há muito tempo. O patrimônio da cidade ou as pessoas desabrigadas parecem não importar; há muita hipocrisia, isso sim.

Que o Codepac, que corretamente luta pela Pinacoteca Municipal, também em vias de ser desmantelada e engolida, igualmente volte seus olhos para a Igreja São Benedito e cuide dela, para manter nossa história, para honrar um povo sofrido que trabalhou e morreu para ajudar a erguer esta Piracicaba.

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Eloah Margoni, médica

 

 

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