Por que as Big Techs estão deteriorando a natureza humana?

Rodolfo Capler

 

George Orwell certa vez observou que eufemismos são usados em política, guerra e negócios como instrumentos que “fazem mentiras soar como verdades e o assassinato, respeitável”. As Big Techs, como são conhecidas as principais empresas de tecnologia do Vale do Silício (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft…), mantêm o cuidado de camuflar suas ações unilaterais de extração, manipulação e uso de dados pessoais dos seus usuários. Utilizando jargão industrial para ocultar suas importantes operações de superávit comportamental, as Big Techs utilizam termos como “data exhaust” [exaustão de dados] e “digital breadcrumbs” [migalhas digitais], para esconder suas constantes violações de privacidade e inadvertidas espionagens infligidas aos usuários da internet.

Desde o aparecimento dos arquivos Snowden, em junho de 2013 – o maior caso de delação de espionagem da História -, as ações repudiáveis do Vale do Silício tornaram-se conhecidas do público. Edward Snowden, que à época, tinha apenas 29 anos e que não passava de um funcionário do escalão médio da NSA (Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos), revelou ao jornal The Guardian, milhares de documentos que comprovavam o acesso irrestrito da agência de espionagem americana aos dados de milhões cidadãos norte-americanos, assim como de cidadãos e de autoridades de outros países. Um dos documentos mais importantes e estarrecedores vazados por Snowden era uma apresentação em PowerPoint de 41 slides explicando a função de um programa ultrassecreto chamado PRISM. O programa PRISM evidenciava o compromisso das empresas de tecnologia do Vale do Silício de se tornarem parceiras corporativas da Agência de Segurança Nacional. Empresas como Microsoft, Google, Yahoo, Facebook, YouTube, PalTalk, Skype, AOL e Apple cediam os dados de seus usuários à NSA.

O caso Snowden não apenas tornou notório o processo de espionagem doméstica em massa por parte do Estado americano, como desvelou as reais intenções e pretensões das Big Techs. Impondo um programa de vigilância aos seus usuários – que ao serem monitorados em suas ações na internet, tornaram-se localizáveis e rastreáveis a todo e qualquer momento -, as empresas do Vale do Silício fixaram ao derredor de cada um de nós, aquilo que o pesquisador bielorusso Evgeny Morozov chama de “cerca invisível de arame farpado”. Sem nos apercebermos de que estamos sendo espionados e monitorados, as Big Techs estão remodelando não apenas a nossa estrutura cerebral (como alertou Jaron Lanier), e nossos padrões de comportamento (conforme denunciou Sean Parker), mas acima de tudo, a nossa natureza humana. Esse é o alerta da professora emérita da Harvard Business School, Shoshana Zuboff, em seu mais recente livro “A era do capitalismo de vigilância”. Zuboff afirma que as empresas de tecnologia do Vale do Silício ajudaram a criar e estão desenvolvendo o chamado “capitalismo de vigilância”, que nada mais é que a reivindicação de maneira unilateral da experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais. Ou seja, além de utilizar os nossos dados pessoais para o aprimoramento de produtos e serviços, o Vale do Silício está manufaturando o nosso superávit comportamental em produtos de predição que antecipam o que faremos agora, daqui a pouco e mais tarde.

Assim, as Big Techs se alimentam de todo aspecto de todas as nossas experiências, prevendo e predeterminando as nossas ações futuras e devastando a nossa humanidade de forma radical. Com sua estrita vigilância somos privados da soberania individual, sendo destituídos dos “direitos de santuário e de um tempo futuro”, conforme salienta Zuboff. O ataque à santidade do indivíduo pode ser comprovado também pelo modo como as mídias digitais estão alterando o nosso comportamento social. Com a invenção do like button (botão de curtir) em 2015, nos tornamos dependentes da experiência de recebermos likes, porquanto eles servem como validadores sociais. A nossa incessante busca por curtidas interfere na qualidade e na dinâmica dos nossos relacionamentos interpessoais (quem, por exemplo, já não ficou chateado com um amigo por não ter recebido dele um like num post do Instagram?), e tem modificado o modo com o qual lidamos com profundas experiências humanas como a dor. O filósofo Byung-Chul Han, afirma que “o like é o signo, o analgésico do presente”. Para Han, a sociedade contemporânea que se caracteriza pela constante fuga da dor – a qual ele chama de sociedade paliativa -, é a sociedade do curtir. Essa sociedade orientada pelo like “degenera uma mania de curtição, onde tudo é analisado até que provoque bem-estar”. Os processos decorrentes disso são aterradores e se levantam como uma grande ameaça a nossa natureza.

O único modo de resistirmos à totalitária vigilância e manipulação das Big Techs é nos libertando de seus tentáculos. Fazemos isso, não rejeitando a internet (ela não é o problema!), mas aproveitando o que ela tem de melhor. Por exemplo, em vez de mantermos conversas íntimas com nossos amigos pelas redes sociais, podemos lhes mandar e-mails – de preferência utilizando uma conta de e-mail não espionada pelo provedor. Ao lermos matérias on-line temos a possibilidade de acessarmos as notícias diretamente dos sites. Podemos assinar bons portais de notícias e lê-los diariamente, nos tornando mais bem informados do que os usuários de redes sociais que se arriscam acessando feeds personalizados. Temos a possibilidade de acompanharmos vídeos pelo YouTube, porém sem uma conta do Google – assistirmos desvinculados a uma conta e com alguns plugins voltados para a privacidade nos dará acesso a uma experiência com muito menos manipulação.

Tudo isso parece um esforço desmesurado, mas é o que nos permitirá assumirmos o controle das nossas próprias vidas. Ainda dá tempo de interrompermos o processo tecnológico de exploração que temos sofrido e nos desligarmos dos impérios de modificação de comportamento do Vale do Silício.

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Rodolfo Capler, teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Mídia e Comportamento da Fundação São Paulo/PUC-SP; e-mail: [email protected] /Instagram: @rodolfocapler

 

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