Fantasmas da aldeia

Cecílio Elias Netto

 

Os espanhóis são cautelosos. “No creoenlasbrujas, pero que lashay,lashay.” Em bruxas, eles dizem não crer. Mas sabem que existem. Povo sábio, creio eu. E confesso não discordar. Pois, ao longo da vida, já vi – “com esses olhos que a terra irá comer” – coisas que dizíamos ser do arco da velha.

Superstições, lá não as tenho muitas. Acho. No entanto e como se sabe, “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.” Em mim, em cada chamada “Sexta Feira da Paixão” fico mais atento. Vivi a experiência, ainda adolescente. Meus pais queriam que os filhos os acompanhassem à vigília do Jesus-Morto. Bati o pé, não fui. Fiquei sozinho em casa. No meio da tarde, as nuvens escureceram, trovões começaram a ribombar. E, então, entre relâmpagos, um raio estalou perto da casa. Tremi de medo. Seria um castigo dos céus? Tenha sido o que fosse, o fato é que, àquelas sextas-feiras, fico bem quietinho. Ainda hoje.

E Júlio Bruhns? Ele foi uma das mais fascinantes personagens populares de Piracicaba. Era sobrinho-neto do admirável Thomas Mann, Prêmio Nobel de Literatura, cuja mãe nascera em nossa cidade. Júlio vestia-se descuidadamente, sempre, porém, de terno. De quando em quando, passeava pela cidade com a mulher, também Júlia. E, com eles, um cachorro horroroso. Os cabelos de Júlia chegavam-lhe à cintura. E Júlio sofria de um mal cujo nome científico não me recordo, dizia-se que “doença de São Guido”. Ele se estremecia todo e os que não o conheciam fugiam dele.

Muito próximo fui do Júlio Bruhns, amigo de meus pais. Quase todas as noites, esperava-o passar por nossa rua, pontualmente às 20h. E lá me ia, eu, acompanhando-o em sua peregrinação. Do centro, íamos até a Paulista. Descíamos, chegávamos, depois, à Rua do Porto. Voltávamos e as lições de Júlio enriqueciam-me. A sua era cultura imensa. Fora revisor do “Estadão”, falava seis ou sete línguas. Eu me deslumbrava ao ouvi-lo falar em árabe com meu pai. E em japonês, com o também inesquecível Tanaka. Mas não vou contar tudo o que vi e ouvi. Ao lado do Pedro Petrocelli, do PostoPetrocelli, vi Júlio Bruhns atirar um molho de chaves contra a parede e… Bem, as chaves ficaram coladas nos tijolos. “No creoenlasbrujas…”

Pois bem. A moçada – que tenta profanar a Rua do Porto – não sabe o risco que corre. Piracicaba tem fantasmas formidáveis que exigem respeito. Além daquela região, lembro-me da Igreja de São Benedito. O ex-prefeito Adilson Maluf pode testemunhar. Ele tem Benedito no nome. E, quando foi eleito, sua generosa mamãezinha implorou-lhe: “Não mexa com a Igreja do São Benedito”. Adilson não mexeu. Pois, a cidade não se esquecia de que Luciano Guidotti morrera de repente; SalgotCastillon tivera o mandato cassado pelos milicos; Cássio Padovani falecera logo após assumir o cargo. A cidade cochichava: eles tinham planos de mexer com a igreja.

Na região da Rua do Porto, há  mistérios impressionantes. Pode-se perceber, por exemplo, como é sombria a área próxima à antiga fábrica de tecidos. Por lá, andava o “homem da capa” preta, que seduzia tecelãs. O cemitério dos índios exala transpiração de almas atormentadas. As pedras do Engenho guardam o suor, o sangue, as lágrimas dos pretos escravizados. Na curva do rio, Nossa Senhora dos Prazeres avisou que “esta nunca será uma cidade grande”.  A Inhala Seca ainda aguarda junto à pedreira. Nhô Lica perambula por lá.

Aposto: essa moçada, por alguns dias, terádor de barriga. No mínimo. E fantasmas irão, à noite, puxar-lhes as pernas. Tomara. “Brujaslashay, lashay.”

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana ([email protected]); Blog: cecílio.blog.br

 

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