Mîsharum: você sabe o que é isso?

Armando Alexandre dos Santos

 

É bem conhecida a frase “Sumumius, summainiuria”, escrita porMarco Túlio Cícero (106-43 a.C.) no livro “De Oficiis” (1, 33,3). Com frequência utilizada no meio jurídico à maneira de aforismo, significa que um direito, quando aplicado de modo excessivo, pode ocasionar uma situação de injustiça contrária ao próprio Direito. Ela contém não propriamente uma regra jurídica, mas um conselho sábio, prudente e venerável que ajuda a interpretar as leis – não só em sua letra, mas também e sobretudo em seu espírito. De fato, a experiência de todos os povos, desde os mais antigos até os atuais, ensina que uma lei, ainda que boa, justa e razoável, se aplicada excessiva e indiscriminadamente, pode conduzir a uma situação injusta. Por isso, a salvaguarda do Direito – no sentido mais amplo e pleno desse termo – recomenda e em alguns casos até impõe o afastamento da letra da lei, a fim de que se preserve o seu espírito e não ocorram desajustes gravíssimos. Daí outro aforismo latino clássico, de grande sabedoria, frequentemente utilizado pelos juristas antigos: “pro iurequamvis contra legem” (pelo direito, ainda que contra a lei).

Já na antiga Mesopotâmia do terceiro milênio antes da Era Cristã uma instituição jurídica peculiar, a Mîsharum, procurava corrigir os abusos decorrentes da aplicação excessiva da lei; e na lei mosaica, que serviu de base jurídica para o Judaísmo e influenciou poderosamente o Cristianismo, outra instituição legal, o Jubileu, ordenava-se ao mesmo fim.

Mîsharum é palavra do idioma acadiano, falado na Babilônia antiga, e pode traduzir-se aproximativamente, por justiça. Embora seu sentido original possa ter sido bem mais amplo, é usada especificamente para designar o ato legislativo pelo qual o soberano de Babilônia ou de alguma outra cidade-estado da Mesopotâmia, de tempos em tempos, autocraticamente promulgava uma série de medidas que incluíam, entre outras, a anistia de dívidas tributárias contraídas por particulares em relação ao Estado, a anulação de operações de compra e venda de imóveis rurais ou urbanos efetuada por particulares – retornando tais imóveis para seus primitivos proprietários – e a libertação de certo tipo de escravos (de modo particular aqueles que haviam sido escravizados em decorrência de dívidas contraídas por particulares em relação a outros particulares).

O decreto real da mîsharum era promulgado sem previsão temporal definida, mas sempre que o soberano, sponte propria, julgava adequada sua oportunidade. Ele incidia em dois níveis muito diferentes. O primeiro deles era nas relações econômicas do Palácio (entenda-se: do Governo, ou em termos modernos, do Estado) com os particulares, perdoando impostos cujo pagamento, em razão de circunstâncias várias, como períodos de secas e más colheitas, se haviam acumulado e ameaçavam tornar-se impagáveis e podendo determinar um colapso econômico coletivo de uma categoria inteira de pessoas indispensável para o equilíbrio e estabilidade da sociedade como um todo. Esses impostos eram pagos, geralmente, com uma parcela da produção agrícola. Em outras palavras, o Governo renunciava ao recebimento de uma parcela de seus rendimentos, em benefício do equilíbrio coletivo; tratava-se, pois, do que hoje se designa como uma ampla anistia tributária.

Num segundo nível da incidência, que afetava diretamente as relações econômicas privadas entre particulares, por força do decreto real eram anuladas alienações de imóveis urbanos ou rurais efetuadas em um período anterior, ficando os compradores obrigados a efetuarem a devolução dos mesmos aos seus antigos proprietários, ou a entregar a estes uma compensação em prata ou em gêneros. Também dívidas contraídas entre particulares por motivos de necessidade eram declaradas nulas, sendo libertadas ipso facto as pessoas que, em razão do endividamento, tinham sido escravizadas pelos credores. Isso se dava com pessoas que cultivavam terras de propriedade de altos funcionários do Palácio e tiravam dessas terras seu próprio sustento, pagando com uma parte da produção aos senhorios. Em casos de más colheitas, o pagamento dessa parcela devida aos proprietários não podia ser feito, e daí decorria a escravização do devedor. Essa prática era habitual na Antiguidade: quando um devedor, em grave necessidade, se via impedido de saldar uma dívida, entregava um parente seu ou, conforme o caso, se entregava a si próprio como escravo, pelo tempo necessário para pagar com seu trabalho o que era devido. Era esse tipo de escravidão temporária que o decreto real declarava nula, retornando a pessoa escravizada à condição de liberdade. Não eram, porém, abolidas pela mîsharum as dívidas contraídas por meras relações comerciais, nem eram manumitidos os escravizados em decorrência dessas dívidas.

O ato soberano da mîsharum constituía, assim, uma interferência do poder público no âmbito das relações econômicas privadas, destinada a corrigir abusos e inconvenientes produzidos pela aplicação normal das leis e regras vigentes. Em outras palavras, atos legais e legítimos, quando repetidos e acumulados, produziam uma situação de injustiça social. Corrigir tal situação, mediante uma intervenção governativa, assegurava o restabelecimento de uma situação justa, tendo em vista mais o bem estar do conjunto da sociedade do que o benefício dos particulares. É por isso que modernamente se tem procurado, nessa antiga instituição mesopotâmica, as origens mais remotas daquilo que modernamente se designa como justiça social. Voltaremos ao assunto.

___

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima