Cultura, política e fraldas

Alê Bragion

 

Os políticos e as fraldas devem ser constantemente trocados pelos mesmos motivos — teria sentenciado Eça de Queiroz, autor (dentre outras maravilhas da literatura) do emblemático “A Cidade e as Serras”. Se dita ou não por Eça, a sentença nos mostra que — tal como nos sinalizam também os temas de “A Cidade e as Serras”, dentre os quais está a questão da modernidade versus tradição — talvez o século XIX não tenha ficado assim tão para trás como se poderia imaginar – vivendo ele ainda muito quente no coraçãozinho de muitos e presente em parte dos debates de nossa contemporaneidade.

Equívocos políticos, inabilidades de gestores, desconhecimento do chão da vida real e dos anseios da polução não são – todavia – prerrogativas de políticos do XIX, do XX ou do XXI. Ao longo da história, legislar sobre o que se desconhece, propor ações absolutamente desnecessárias e tentar executar o inexecutável via de regra constituíram-se como costume de muitos daqueles que, tais como as fraldas citadas, sempre acolheram e puseram no mundo aquilo que, de imediato, deveria ser descartado no lixo das ideias.

À esquerda, à direita, ao centro, abaixo ou acima, a política nacional registra assim as mais esdrúxulas tentativas de interferência sobre o que pouco ou nada tem a ver com o campo de atuação de vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidentes da república. Puxando pela memória, lembremos – por exemplo – da ideia de se acabar com a “crase” (ou melhor, com o acento grave indicativo da ocorrência de crase): Projeto de Lei de número 5154 apresentado, em 2005, à Câmara Federal pelo não menos folclórico deputado João Hermann Netto (PDT). Antes dele, na mesma trilha, Aldo Rebelo, em 1999 (à época no PC do B), tentou proibir o uso de estrangeirismos na língua também por meio de um Projeto de Lei que previa multas para estabelecimentos comerciais que usassem palavras como “delivery” ou “express”. Pode? God!

Outro gênio da interferência sobre o nada, o ex-governado José Roberto Arruda (então no DEM), do DF, baixou decreto em 2007 “demitindo” o gerúndio! É sério! O decreto de número 28.314 de 28 de setembro de 2007 da Lei Orgânica do Distrito Federal, artigo 100, incisos VII e XXVI, dispõe que: “fica demitido o Gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal.” Não bastasse o desejo de interferir numa prática cultural alheia a sua vontade – que é o uso do idioma materno – o referido governador (talvez num sonho de se tornar um gramático da política) quis “demitir” algo que é abstrato e que a morfologia classifica como uma das formas nominais do verbo: o gerúndio (com o qual construímos expressões terminadas em ando, endo e indo). Estão me entendendo?

Mais recentemente, no plano nacional… Bom, aí precisaríamos de um sem-fim de páginas para descrever as sandices que atentam diariamente contra o bom-senso, contra a cultura, contra a vida, contra a arte e contra a nação. Afinal, o que dizer de um mito que, dentre outras, extingue o Ministério da Cultura e manda o povo comprar fuzil no lugar de feijão? – só pra citarmos duas pérolas de um infinito rol de bobagens.

Tempos sombrios? Sim. Tempos sombrios. E se nos vale, porém, algum consolo fato é que políticos que praticam tais atentados contra a cultura e contra o povo têm vida curta no poder, e sua trajetória acaba sendo registrada na história com as mesmas cores cinzentas com as quais eles tentam cobrir a nossa cultura – haja vista o derretimento do (des)governo federal em apenas dois anos e o fosso em que, entregue ao centrão, encontra-se ele agora. Pactuar com o diabo (já nos lembra Goethe) custa a alma e aqueles que o fazem devem saber que o inferno (da história) será implacável com eles. Por isso, é bom que tais fenômenos da política cultural sempre tenham em mente também que algumas fraldas (assim como alguns políticos) acabam tendo de ser trocadas mais rapidamente do que outras.

Em todo caso, não nos esqueçamos de que enquanto a cultura seguir como moeda de troca e de apoio político, enquanto (em todas as esferas do país) legislarem sobre ela aqueles que dela nada sabem, tristemente veremos nossos bens culturais e nosso patrimônio histórico – material ou imaterial, como a língua – correndo o risco de serem desmontados e substituídos por sedes de polícia, postos de saúde e outros descabimentos.

Como nos ensinou tantas vezes a história e a literatura – e tal como (em outras palavras) entende a personagem Jacinto, em “As Cidades e as Serras” – erigir metrópoles que possuam políticas públicas eficientes para a cultura exige esforços, conhecimento, cuidado, sabedoria, planejamento, estudo, projeto. Afora isso, o que sobra é papel, dor, verborragia, ruínas do pensamento, apagamento da tradição e um imenso (caro e inútil) exercício político sobre o nada.

(Em tempo: #ficapinacoteca)

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017.

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