Antonio Gramsci e a questão religiosa

Armando Alexandre dos Santos

 

Entre os autores marxistas, tanto os clássicos quanto os que mais atualmente se dedicaram à aplicação do pensamento de Marx nas mais diversas áreas do conhecimento humano, nenhum por certo estudou tão em profundidade o fenômeno religioso quanto Antonio Gramsci (1891-1937).

Embora colocado longamente à margem do que se poderia chamar “ortodoxia marxista” – seja qual for o sentido que se queira dar a essa expressão – o fato é que a espetacular derrubada do Muro de Berlim, no final de 1989, marcando a também espetacular derrocada do colosso soviético, fez com que a figura de Gramsci, desaparecido meio século antes em pleno regime fascista, adquirisse novo realce. De visionário heterodoxo e fracassado na vida, passou a ser considerado um como que profeta que, com grande antecipação, previu e denunciou os falsos rumos para os quais a aventura stalinista estava conduzindo a Internacional. Suas táticas políticas, já testadas e em boa parte aplicadas por movimentos de esquerda, especialmente na América Latina e na própria Itália, pareceram também ganhar novas luzes, mostrando-se mais eficientes do que a velha e estagnada práxis adotada e imposta longamente pela cúpula partidária moscovita.

Muitos de seus conceitos readquiriram, assim, nova atualidade. Talvez se possa dizer que se as esquerdas, em indubitável crise de paradigmas neste período de pós-modernidade, ainda podem ter esperança de atuação no panorama político e social decorrente da globalização, será em Gramsci, e só nele, que poderão encontrar novos caminhos, bem diversos dos já trilhados num passado que, em vão, se procura esquecer.

A temática religiosa esteve continuamente presente, no horizonte intelectual do comunista Gramsci. Exercendo sua militância numa Itália profundamente impregnada pela religião, e sendo, ademais, sardo, natural de uma região da península em que a influência religiosa muito profundamente se fixara através dos séculos – de modo bem diferente de como o fizera no Norte da península, aliás – Gramsci não poderia ignorar esse poderoso fator, na análise que fazia da realidade que o circundava, com vistas a nela exercer sua atuação política.

É inegável, pela análise que se faz do pensamento gramsciano, que ele atribuía à temática religiosa importância transcendental. Não se tratava apenas de um exercício intelectual a que se entregouà falta de melhor, nos longos anos de encarceramento, por não dispor de material de estudo sobre outro tema que o atraísse mais. É verdade que, na prisão, era bastante reduzido o número de jornais e revistas a que podia ter acesso. As publicações católicas, segundo se depreende das biografias de Gramsci, ao que parece não eram objeto de censura especial por parte da polícia carcerária mussoliniana, de modo que Gramsci tinha acesso a várias. Entre estas, ocupa especial destaque a CiviltàCattolica, tradicional publicação editada em Roma por religiosos da Companhia de Jesus desde 1850 até o momento presente. Ao tempo de Gramsci, a CiviltàCattolica era considerada, geralmente, quase como porta-voz do próprio Papado.

Sem dúvida, as circunstâncias em que se encontrava Gramsci, no cárcere, favoreceram a que dedicasse ao fenômeno religioso uma margem tão grande de sua atenção, mas basta examinar os seus numerosos apontamentos a respeito, para se ver que a profundidade de suas notas é assaz indicativa de um interesse muito grande pelo tema, de um interesse que ultrapassava largamente os limitados horizontes impostos pela sua reclusão quase solitária. Já a leitura atenta de seus escritos da juventude (com o acompanhamento do muito que escreveu nos periódicos Avanti!,GridodelPopolo e OrdineNuovo) permite avaliar até que ponto a preocupação com o estudo dos temas religiosos foi uma constante no pensamento gramsciano.

“Um dos mais preciosos ensinamentos de Lênin foi o de que devemos estudar muito as opiniões de nossos inimigos de classe”– escreveu o pensador sardo numa carta ao líder comunista PalmiroTogliatti, datada de 14 de outubro de 1926, inserta no contexto dos debates sobre a crise do Partido Bolchevique. Esse conselho, Gramsci o seguiu à risca no que diz respeito ao catolicismo, estudando-o em profundidade. Concretamente, os QuadernidelCarcere, que contêm os apontamentos gramscianos coligidos durante os anos de prisão, tratam largamente da temática religiosa. Há neles todo um bloco a respeito, intitulado “Ação Católica”, o qual analisamos com atenção e serviu de fonte básica para nossas reflexões.  Voltaremos ao assunto na próxima semana.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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