O segundo assassinato de Almeida Júnior. Ou a morte anunciada da Pinacoteca Miguel Dutra

Alexandre Bragion

 

Quis o destino que, em 13 de novembro de 1899, o pintor Almeida Júnior morresse em solo piracicabano, assassinado com uma facada na clavícula esquerda num crime à época classificado – igualmente a outros crimes bestiais – como de lavagem da honra. Encostado à parede do (também) já extinto Hotel Central, Almeida Júnior foi morto pelo próprio primo – que era marido da mulher com quem o pintor vivia um caso amoroso. Diz a história ainda que, caído, ensanguentado, o moribundo teve forças para olhar seu assassino e cravar para a posteridade sua lapidar despedida: “estou morto. Mas que homem ingrato”.

Homenageado, muitas décadas depois de sua morte, com um busto que adorna a praça que carrega seu nome – no ponto fulcral no coração das artes plásticas piracicabanas –, Almeida Júnior olha agora, de frente, a extinção da histórica pinacoteca “Miguel Dutra”, cujo destino fatal vem sendo selado pela gestão municipal atual que quer transformar o prédio da Pinacoteca em – pasme-se! – sede da polícia federal.  Pobre Almeida Júnior. Pobre Piracicaba.

Sem saudosismos anacrônicos, cumpre afirmar – e aqui o faço como cidadão (mas também como professor, pesquisador e artista piracicabano) – que não há argumentos cabíveis que sustentem tal triste proposta (nem mesmo a necessária reforma que a Pinacoteca exige). Aliás, podem prometer transferir a Pinacoteca até para a lua ou para o lugar mais caro do mundo, com um milhão de pessoas passando por ela a cada minuto que, mesmo assim, nada justifica o apagamento na história piracicabana desse patrimônio cultural, artístico e histórico que é a Pinacoteca. Se ocorrer, seu desmonte jamais deixará de ser – ao que pese qualquer argumento em contrário – um desserviço à cidade e um ataque à memória do município.

Saiamos, todavia, do apalavrado que envolve a questão e caminhemos para a lógica das coisas. Sem proselitismo político, sem partidarismo, sem oposicionismo gratuito ou qualquer intenção que não seja apenas a de defender um patrimônio cultural, elenco aqui 7 (cabalísticos?) argumentos que podem ajudar a ilustrar o equívoco que a ocupação do prédio da Pinacoteca pela polícia federal representa. São eles:

  1. DESMONTE do Patrimônio Cultural e Histórico da cidade. (A Pinacoteca é patrimônio cultural de Piracicaba. Foi construída para ser Pinacoteca. Tombada, sua história material e imaterial registra a trajetória das artes plásticas da cidade. Por ali passaram grandes artistas do país. Lá estão fixados pés e mãos, no cimento, de artistas renomados das artes brasileiras. 2. Falta de projeto técnico (Até o momento, que se saiba, NÃO HÁ NENHUM PROJETO TÉCNICO apresentado sobre a transferência para o Engenho). 3. Falta de projeto de CONSERVAÇÃO DE ACERVO. (Até o momento, também que se saiba, oficialmente NÃO HÁ NENHUM PROJETO apresentado sobre a CONSERVAÇÃO DO ACERVO). 4. Centralização da Cultura. (Na contra-mão de uma noção dilatada de cultura, levar a Pinacoteca para o Engenho é centralizar parte importante da cultura piracicabana e desprestigiar a presença do patrimônio cultural na cidade). 5. Mercantilização da cultura. (Desmontar a Pinacoteca e instalar nela a polícia federal revela uma noção analfabeta de cultura, a qual atribui valor apenas mercantil ao patrimônio e não histórico, identitário e artístico. É fazer o prédio “render” de maneira UTILITARISTA). 6. Confusão entre Público e Público-Turista. (O turista que vai ao Engenho – apenas aos fins de semana, pois durante a semana o Engenho é desértico – o faz para visitação geral e despretensiosa. Formar um “público” para uma Pinacoteca é outra coisa e exige programas específicos de formação de público. O que tal transferência propõe é um público de aluguel, um público de empréstimo do Engenho – que lá estará para ver o Rio, o Engenho, as árvores etc. É um “público” importante? Sim! Mas não se trata de um público cativado especialmente para um espaço ímpar. 7. Perda de ponto turístico. (Piracicaba perderá um de seus mais bonitos pontos turísticos, já apontado em material oficial como um dos 30 motivos para se conhecer a cidade).

Isto posto, e como a ideia aqui é a de fazer crônica, cabe imaginar que no alto de sua postura de estátua, Almeida Júnior observa o movimento e – talvez – aguarde sua segunda facada, agora a ser cravada em seu coração de bronze. Vendo uma cidade que quer ser metrópole, o pintor deve lamentar que ela ainda não pense como metrópole, mas viva sob o manto do século dezenove. Desejoso de ver uma Piracicaba arrojada, que saiba valorizar e conservar seu patrimônio ao mesmo tempo em que avança modernamente, Almeida Junior – em sua praça – poderá em breve assistir, no máximo, ao circular de viaturas e agentes da polícia. Nesse momento – e como todos e todas nós que resistimos e valorizamos a arte e a cultura – talvez ele repita sua frase final (à qual faremos coro): “estou morto. Mas que homen(s) ingrato(s).”

(Em breve, será a vez de comentar sobre a proposta de transferência da biblioteca também para o Engenho. Que tempos vivemos…).

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Alexandre Bragion, especialista em Estudos Literários pela Unesp. Mestre e doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, cronista de A Tribuna desde 2017, coordenou o curso de pós-graduação em Literatura e Outras Linguagens Artísticas da Unimep e recebeu – dentre outros prêmios – a medalha Branca Motta de Toledo Sachs de Mérito Literário em 2017.       

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